PULSÕES DE VIDA E MORTE EM TUTAMÉIA - Maria Célia Chaves Ribeiro - 2001


Dissertação apresentada ao Mestrado em Estudos Literários do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Estudos Literários.
Orientação: Prof. Dr. Raimundo Nonato

COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho, Orientador
Prof. Dr. Evando Nascimento
Prof. Dr. Wilberth Claython F. Salgueiro
Prof. Dr. Fernando Pessoa

SUMÁRIO
Resumo
Résumé
Introdução
O cego desejoso de ver e seu guia voyeur
A química da paciência de Jó em louvor ao prazer
O arrombamento das águas e a barca de Eros
Prazer e morte, a onírica imersão
nas Sete-Lagoas; ou Who is com cellos?
Anexos
Apontamentos teóricos

Agradecimentos

Evando Nascimento, pelo espaço aberto ao pensamento e à vida a partir de suas aulas;
Andréia Delmaschio, pela revisão desta dissertação, expressão de afeto;
Fabíola, pela versão do “Resumo” para o francês;
Luiz Salsa Romero, pelos comentários a respeito da teoria freudiana;
Professores e colegas do Mestrado em Estudos Literários – amigos.

Ao território do corpo, suas sensações e pensamentos
À vida e à serenidade da morte em seu tempo
Aos meus irmãos amigos e poetas que me configuram
Ao Ar que respira minhas entranhas
Às filhas que pari
Aos meus pais que me deram existência

INTRODUÇÃO

Tutaméia me fascinou desde o primeiro contato quando já a acolhi como espaço de investigação. A cada nova leitura deste livro aumenta a certeza das dificuldades de manipular a potência do texto rosiano. Como a elaboração de uma dissertação é também o investimento de uma escritura no próprio corpo, não pude abrir mão desta escolha e seus riscos, numa atitude responsável com a temporalidade da minha existência.

Se permaneço nesta ousadia devo-o à disseminação do “pensamento desconstrutor” de Derrida por Evando Nascimento, durante sua estada como professor convidado no Mestrado de Estudos Literários na UFES, em 1997 e 1998. O encontro com Derrida levou-me a Freud, em especial a seus textos sobre o funcionamento do aparelho psíquico, as instâncias do ego e do id, as pulsões de morte e de vida e os princípios que expressam suas tendências.

Busquei cortar e expor uma camada de Terceiras Estórias fazendo uso tanto de “operadores textuais” pensados a partir da leitura de Freud por Derrida que radicalizam alguns raciocínios do pai da psicanálise, seus “atos de coragem” conforme Freud os denominava, como também lancei mão de conceitos freudianos que envolvem alguns princípios questionados por Derrida, como é o caso da função primária subjacente à teoria que afirma que a tendência da pulsão de morte para a destruição expressa o princípio mais radical do funcionamento psíquico.

Recorri a um e a outro autor conforme a solicitação da estória rosiana que percorri e interpretei fazendo uso da psicanálise tanto de forma conceitual como de forma metafórica. Ciente do risco que corri ao ler os textos freudianos como se também fossem literários[1], procurei transbordar as estórias de Tutaméia que investiguei para o território da teoria psicanalítica.

Passo agora a uma breve descrição das cenas que assisti em alguns contos de Terceiras Estórias. Em anexo desenvolvo o pensamento de Derrida e Freud de onde retirei os instrumentais que me possibilitaram articular algumas imagens e visualizá-las em movimento.

Selecionei como área de mergulho os contos “Antiperipléia”, “Desenredo”, “Azo de Almirante” e “O Palhaço da Boca Verde”. O uso do verbo mergulhar não diz respeito a uma profundidade e sim à irrupção de um ambiente líquido metafórico nessas estórias que pretendo acompanhar e parcialmente explicar. Nelas observo o movimento de embarcações, ora explicitadas como objetos de cena nas canoas de “Azo de Almirante”, ora sob a forma de metáforas, como a presente no título de “Antiperipléia” e no corpo do texto de “Desenredo”, onde imagens recorrentes de barcos em movimento indicam, de maneira figurada, as sensações e as alternativas plasmadas pelo protagonista Jó Joaquim para conseguir verter suas pulsões eróticas em circunstâncias adversas.

A água é focalizada ora em sua superfície, uma espécie de chão móvel a ser conquistado, ora como um meio penetrável, uma voragem. Na primeira situação o relacionamento com a água assemelha-se aos processos mentais onde a energia psíquica é ligada, controlada pelo ego, administrada pelo princípio de realidade. Nos casos em que ocorre imersão é como se deparássemos com o livre fluir da energia inconsciente, das forças oriundas das pulsões e dos processos oníricos.

Em “Antiperipléia”, o guia de cego Prudencinhano realiza um périplo figurativo no sentido inverso daquele que seu patrão efetua e que o leva à morte por queda em despenhadeiro. A navegação de Prudencinhano na contramão da de seu patrão preserva-lhe a vida.

Em “Desenredo”, a afirmativa de que “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel” (ROSA, 1979, p. 38) insere a representação de um precipício ambíguo por possuir uma superfície virtual.

A estória de “Azo de Almirante” se faz a partir de uma enchente que inunda o texto, move Hetério a improvisar e comandar uma equipe de resgate e tira as vidas de sua mulher e filhas. O percurso do protagonista ao longo do conto se faz na face do rio, repetindo na diferença a atividade de barqueiro até o desfecho final, quando sua canoa é perfurada em uma itaipava e ele, risonho e ferido, morre no “brejo da beira” (ROSA, 1979, p. 26). Itaipava, “recife de pedra que atravessa um rio de margem a margem, causando o desnivelamento da correnteza” (FERREIRA, 1986, p. 974), corresponde à elevação do que está no fundo cuja insurgência aumenta a velocidade do fluxo da água. A submersão e morte do protagonista ao final do conto indicam um arrombamento do espelho d’água onde navegava. Esta cena derradeira abre o território líquido vislumbrado em o “Palhaço da Boca Verde”.

Nessa estória aflora dos nomes dos três principais personagens uma série de imagens de celenterados, águas-vivas fazendo com que um mundo onírico submerso se apresente como uma camada do texto. A começar pela sonoridade do nome do protagonista X. Ruysconcellos, possível de ser transcrita como uma equação matemática, envolvendo ao mesmo tempo um enigma: “O X. da questão é: Who is com cellos?” [2] Este celenterado sai em busca de Ona Pomona. Pomona, deusa dos pomares[3], é também anagrama de ponom, água-viva. O palhaço Ruysconcellos termina morrendo nos braços de Mema, moradora de Sete Lagoas, pressentida como “um vinagre perfumoso” (ROSA, 1979, p. 116). Vinagre é sinônimo de água-viva. Em determinado momento o protagonista relaciona Ona a Mema balbuciando “-···... nona... nopoma... nema” (ROSA, 1979, p. 117). No final da cadeia associativa entre as duas personagens, no lugar de Mema, encontramos nema, isto é, filamento que remete a nematocisto, célula característica de celenterados,

formada por uma bolsa onde se encontra um filamento imerso em líquido urticante. A célula urticante, ou nematocisto, possui um dispositivo, (cnodocílio) disparador de todo o mecanismo. Quando um objeto flutuante ou natante toca o cnidocílio, o filamento é lançado para fora, junto com o líquido urticante, provocando queimaduras. (FERREIRA, 1986, p. 1188)

Esta possibilidade de interpretação das imagens emergentes dos nomes dos personagens é reforçada pelo enredo do conto, e será desenvolvida no capítulo referente a esta estória. Cabe aqui uma citação de “Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens”, de Ana Maria Machado:

O que nos revela uma análise da escrita rosiana é que, no engendramento de seu texto, no trabalho ativo da escrita, o Nome próprio (particularmente o dos personagens) desempenha um papel fundamental: ele guarda dentro de si, sob um aspecto latente, uma profusão de semas que se vão manifestando aqui e ali, através do texto. Nesse processo, como foi amplamente demonstrado, o Nome se desintegra em pequenas unidades de significação. Em torno a cada uma dessas unidades (ou as suas múltiplas combinações), formam-se as frases do texto, cristaliza-se a escrita, desenvolve-se a narrativa. As sucessivas associações, condensações e deslocamentos, aproximam o trabalho do texto do trabalho do sonho na descrição freudiana [...] (MACHADO, 1976, p. 195)

Assim, remeto as estórias que selecionei em Tutaméia a acontecimentos ao mesmo tempo exterior e interior[4], transcrevendo as peripécias dos personagens também como encenações de eventos em cenário psíquico, sobretudo dentro de uma organização onírica.

Acompanho prioritariamente nestes contos a ação dramática produzida a partir de uma performance das pulsões eróticas e de morte. Pulsões que se norteiam pelos princípios de prazer, de realidade, ou de nirvana em um meio circundante, desmobilizando as fronteiras entre os espaços interior e exterior, da realidade psíquica e do mundo externo do protagonista, sem as desfazer de todo. Encenação que tanto prorroga a vida, apresentando-se na metáfora da embarcação mantida na superfície, relacionada a um fluir controlado pelo princípio de realidade sobre a livre corrente do rio, imagem figurada correspondente às pulsões, como também facilita a morte, sendo indicada no ato de arrombamento da pele da água e na queda em abismo, numa entrega ao fluxo pulsional e ao “deslizar indefinido de significações” do inconsciente (LAPLANCHE E PONTALIS, 1983, P. 461).

É preciso salientar que em “Antiperipléia” e “Desenredo” o princípio de realidade age no sentido de viabilizar a realização da pulsão erótica. Para tanto dribla o rígido controle social imposto por padrões morais e por comportamentos mesquinhos demonstrado pelos moradores das pequenas localidades onde as estórias são enredadas. O calote se faz jogando com a linguagem, seja proliferando hipóteses, no caso do guia de cego, que assim se defende da acusação de ser o responsável pela morte de seu patrão, ou suplementando a tradição ocidental, conforme atitude de Jó Joaquim para inverter o enredo da estória e da memória da coercitiva população. Em ambos os casos a pulsão erótica não deixa de fluir, ainda que adote um novo caminho, através da escopofilia assumida por Prudencinhano, ou sendo postergada, conforme acontece na estória do paciente Jó Joaquim.

A reversão de energia fluente em força ligada é, portanto, ambivalente. Ela guia a navegação do fluxo da pulsão erótica através de um princípio de realidade, neste sentido liga, aquiesce, mas também propicia seu curso, comandado pelo princípio do prazer.

A proposta de leitura suplementada de Tutaméia
Tentarei expor as estórias escolhidas como dois atos de uma peça teatral, cada qual dividido em duas cenas principais.
Primeiro ato - cena 1: prólogo
O primeiro ato diz respeito ao “passo momentoso” do surgimento do princípio de realidade a serviço do de prazer.
“Antiperipléia” é a cena inicial. Nela atuam os burlescos Prudencinhano e Tomé, o cego. A ação dramática decorre do conflito entre a atitude libidinosa do cego e outras vontades em jogo, culminando com sua morte. Se levarmos em conta a definição de Hegel, expressa por Pallotini[5], de que na base da ação dramática encontra-se uma pessoa moral, ou seja, um indivíduo livre, pensante, responsável por seus atos, consciente dos conflitos e das possíveis conseqüências e do resultado final que suas atitudes instauram, esta cena é um prólogo. Indica um momento anterior à constituição do drama, na medida em que não se tem uma vontade desenvolvida e sim apenas a vazão de um desejo. “Antiperipléia” como o prólogo é uma cena discursiva e introdutória onde são fornecidos “dados prévios elucidativos do enredo da peça” (FERREIRA, 1986, p. 1400). Ela é composta por um ambíguo depoimento de Prudencinhano, proliferativo de suposições sobre as circunstâncias da morte do cego Tomé, a um delegado possivelmente investigador do caso. Esse relato que salva o guia de cego Prudencinhano, a ponto de receber da autoridade ouvinte um convite para exercer seu ofício na cidade grande, apresenta o cego como um libidinoso que dá vazão a suas pulsões sexuais com mulheres que o desejam, desde que bonitas. Elas, por sua vez, se enamoravam de Tomé, inclusive por inverterem em qualidade sua deficiência, pois a cegueira preservava em sigilo suas formas e feições nem sempre belas. Prudencinhano alcovitava os encontros, provinha o cego de concubinas e governava as relações amorosas. Para tanto, desestabilizava o conceito de beleza tão caro ao seu patrão e à metafísica ocidental, transformando-o em um movimento, tornando-o relativo.

A encenação é marcada pela indecidibilidade. Vários termos oscilam com seu oposto. Assim temos a reversão de “defeito” em “qualidade”, de “feiúra” em “beleza”, de “alma” em “pulsão erótica”, de Eros em pulsão de morte e outras mais como serão demonstradas na análise desse conto, sendo a principal ambigüidade a que se estabelece entre quem guia quem: Prudencinhano o cego patrão ou vice-versa.

Vejo os dois personagens também em um cenário psíquico e os leio como o ego e o id, e às suas atitudes como o princípio de prazer e o de realidade.

Segundo Freud o id é possível de ser representado como “se achando sob o domínio dos silenciosos mas poderosos instintos [pulsões] de morte, que desejam ficar em paz e (incitados pelo princípio do prazer) fazer repousar Eros, o promotor de desordens (...)” (FREUD, 1976, v. XIX, p. 76). O ego, por sua vez, é indicado como uma criatura fronteiriça, como a extensão superficial modificada do id a partir da influência direta do mundo exterior, por intermédio do Pcpt.-Cs.[6] Ele tenta efetuar uma mediação entre o mundo e o id, buscando torná-lo dócil ao mundo e, por meio de atividade muscular, fazer o mundo coincidir com os seus desejos[7]. Empenha-se para substituir o princípio de prazer que reina no id pelo de realidade. A percepção representa para o ego o papel que no id cabe às pulsões. A ambigüidade entre quem comanda quem é expressa por Freud no seguinte parágrafo:

A importância funcional do ego se manifesta no fato de que, normalmente, o controle sobre as abordagens à motilidade compete a ele. Assim, em sua relação com o id, ele é como um cavaleiro que tem de manter controlada a força superior do cavalo, com a diferença de que o cavalo tenta fazê-lo com sua própria força, enquanto que o ego utiliza forças tomadas de empréstimo. A analogia pode ser levada um pouco além. Com freqüência um cavaleiro, se não deseja ver-se separado do cavalo, é obrigado a conduzi-lo onde este quer ir; da mesma maneira, o ego tem o hábito de transformar em ação a vontade do id, como se fosse a sua própria. (FREUD, 1976, v. XIX, p. 39)

O livre fluxo da libido representado pelo cego Tomé, que quer o desvario de ver suas amantes para crer em sua beleza, precipitam-no em abismo. Seu guia, suspeito de ter propiciado a queda fatal, salva-se pelo discurso marcado pela repetição e pela différance, pelo processo secundário, pelo princípio de realidade. Ele, Prudencinhano, age como a energia quiescente, ligada. Em seu relato apresenta outra sua atitude, a escopofilia, atividade que coloca o ato de olhar como um substituto da relação sexual, tornando-se assim remédio que o salva da morte. A vontade de uso diferenciado da visão pelo cego Tomé, vontade que o leva à morte, apresenta o sentido da vista como uma droga. A visão, assim, pode ser equiparada a um phármakon oscilante entre a energia livre e a energia ligada, entre o desvario e o princípio de realidade, entre o remédio e a droga. Em Prudencinhano salva por possibilitar o prazer, em Tomé mata por se contrapor à característica vicissitudinária da pulsão erótica, por empecer-lhe, por não permitir o gozo com o que se tem à mão.

Primeiro ato - cena 2
A segunda cena apresenta-nos Jó Joaquim. Este, encantado pela aparição de uma linda mulher casada, consegue contornar os perigos de uma relação proibida e vigiada pelo marido violento e pela população do vilarejo onde mora, tornando-se um herói dramático ao arquitetar seu destino[8]. Ele, diferentemente de Tomé, possui vontade, ou seja, um desejo e um senso de realidade. E os utiliza de forma a não compor uma tragédia como em “Antiperipléia”. Autor de um drama, na medida em que consegue enfrentar os obstáculos colocados entre seu desejo e a possibilidade de realizá-lo, ou talvez e também autor de uma comédia, pois adéqua os obstáculos que precisa transpor para dar vazão à sua pulsão erótica com o objeto que escolheu.[9] Jó se lança no abismal de sua paixão, porém criando uma superfície virtual passível de ser navegada “a barquinhos de papel”. Fazendo uso de leituras suplementadas de textos da tradição ocidental, Jó Joaquim contorna os empecilhos ao livre fluxo de suas pulsões eróticas, sem abrir guarda para a morte. Esse personagem não se encontra cindido em dois, como na estória anterior, Jó Joaquim indica, ao contrário, uma relação funcional entre o princípio de realidade e o de prazer, adiando a morte.

Segundo ato
O segundo ato apresenta a repetição na différance até o derradeiro dispêndio, o retorno ao anorgânico, a separação do soma e da célula germinal: a hora e a vez da pulsão de morte.
A primeira cena diz respeito à repetição que tanto adia a morte, encenando-a, como facilita o caminho até o arrombamento final. A segunda enfoca este momento extremo: a gestação do dispêndio final governada pelo livre fluxo de sentidos, pela lógica do inconsciente, apresentando uma série de imagens imersas no conto que se intercambiam, condensadas de sentidos impregnados pela tradição ocidental.
Segundo ato – cena 1
A cena inicial é a estória de Hetério, nome que combina os significados sublime, etéreo, e a reunião ou ação do diferente. Esse personagem se destaca como herói numa enchente em que toma a iniciativa de juntar canoas e pessoas com o fito de socorrer os desabrigados. Ela, porém não salva sua mulher e suas filhas, carregadas e tragadas pelo rio. A partir de então sua vida repete na diferença o ofício de barqueiro, servindo de junção entre margens em diversas situações, ocupação que remete à atividade de ligação e reunião de Eros, inscrita em seu nome. Hetério é uma palavra composta pelo sufixo nominal “io” que indica reunião ou tendência, e pelo elemento de composição “heter(o)”, procedente do grego, significando outro, diferente. Hetério então pode ser entendido como a tendência para reunir o diferente.
O primeiro desdobramento profissional de sua iniciativa heróica foi a de transpor gente e carga no local onde a destruição da ponte Fôa interrompeu uma estrada. Fô é o nome de Buda na China. Se ligarmos a ele o estado de Nirvana, que segundo o budismo consiste na “ausência total de sofrimento; paz e plenitude a que se chega por evasão de si que é a realização da sabedoria” (FERREIRA, 1986, p. 1194), associado por Freud à pulsão de morte, temos a atividade do barqueiro Hetério substituindo na diferença a morte. Reconstruída a ponte, sobe o rio ele passa a transportar debilitados e esperançosos peregrinos em busca de salvação, ou seja, do adiamento da morte, para a margem do rio onde vive uma “mulher milagreira jejuadora”. Com a mudança da beata Hetério se dedica a mascatear rio acima, rio abaixo, até se deslocar para um local onde o Governo construía uma barreira. A região, onde o fluxo do rio se vê represado, é descrita como “remanso de imenso lago”, “espelho”, “represa, lisa - que não retinha, contudo, corpos de afogadas”, permitindo o retorno à tona da memória da reprimida estória de perda de mulher e filhas.
Com ele passa a trabalhar Normão, a grande norma, podendo ser pensada como a pulsão de morte. Após viver na diferença o resgate não oferecido à sua mulher e filhas, Hetéreo morre ferido, náufrago e risonho após combate para raptar a mulher de Normão, aprisionada pelo próprio pai em sua fazenda. E sua agonia transcorre feliz enquanto ele vai se confundindo com a correnteza do rio por entre pedras, até se aquietar atolado no “brejo da beira”.
Segundo ato – cena 2
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A última cena é um zoom neste momento precipitante.
Expõe a estória do palhaço Ruysconcellos no momento de transcrição de suas atitudes econômicas da morte, através do onanismo e da vivência de um sublimado amor a Ona, para um arrebatado encontro com Mema e a morte.
A estória é ritmada pela decadência dos corpos desses dois atores, em um ambiente líquido e a uma temperatura favorável às reações químicas, onde imagens afloram e se intercambiam a partir de semelhanças formais, relatando, através de metáforas, a fase de onanismo, seguida pela constituição de uma bissexualidade, quando o escudo do “X.”, no nome de Ruysconcellos, se apresenta como Xênio, estrangeiro, o outro, e ele perde a guarda sobre Mema, a que vai esverdeando ao redor dos lábios ao longo do conto, remetida a nematocisto, esta bolsa contendo ferrão e veneno, e também a Medusa.
A imagem abaulada do circo sugere e se metamorfoseia em uma água-viva, sobretudo a caravela que é uma colônia composta de vários elementos, e as águas-vivas da classe Scyphozoa, cujo padrão de reprodução alterna gerações assexuadas e sexuadas.[10] Assim também Ruysconcellos alterna seu ciclo sexual. Ele deixa Ona Pomona - esta cujo nome remete duplamente a onanismo e fruto - após rasgar seu retrato, e transfere para Mema seu foco de atenção. Ela retém a mala com os apetrechos da indumentária do palhaço Dá-o-Galo, sua herança genética. Comparada a um caroço, germinal, Mesma difere de Pomona, o fruto. Como uma viúva-negra, com seus venenos assassinos, sendo ao mesmo tempo dotada de nematocisto, Mema recebe em seus braços o palhaço, e os dois vivem uma cena semelhante à já citada passagem de Freud, e vale aqui reavivá-la, sobre a luta travada pelo princípio de prazer contra a tendência de Eros em introduzir novas tensões energéticas, contrariando o princípio de constância, sobretudo sob

“a forma específica de satisfação, em que todas as exigências componentes convergem - pela descarga das substâncias sexuais, que são veículos saturados, por assim dizer, de tensões eróticas. A ejeção das substâncias sexuais no ato sexual corresponde, em certo sentido, à separação do soma e do plasma germinal.
Isto explica a semelhança do estado que se segue à satisfação sexual completa com o ato da cópula, e o fato de a morte coincidir com o ato da cópula em alguns animais inferiores. Essas criaturas morrem no ato da reprodução porque, após Eros ter sido eliminado através do processo de satisfação, o instinto [pulsão] de morte fica com as mãos livres para realizar seus objetivos.” (FREUD, 1976, v. XIX, p. 63),

Mema esverdeia a boca do palhaço, esta característica de Ruysconcellos apenas citada no título da estória e trazida à tona neste desfecho. Final onde novamente germina o espetáculo, que se prolifera em estórias de terceiros sobre o que surge, com o arrombamento da porta do quarto. Momento e local onde se presencia os desnudos corpos que atuavam sobre a cama, este outro espaço picadeiro, “arena ou palco da morte”.
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Notas
[1] O próprio Freud de uma certa maneira autoriza o trânsito entre a psicanálise e a literatura, tendo em vista que muitas vezes ele parte de textos literários, que lê como cenas psíquicas, para desenvolver um pensamento psicanalítico. Como exemplo podemos citar a utilização que faz de O Homem da Areia de E.T.A. Hoffmann para subsidiar o desenvolvimento de suas idéias acerca do tema do “estranho” no artigo de mesmo nome (FREUD, 1976, v. XVII, p. 273/318). Outro exemplo encontra-se em seu texto “‘Gradiva’ de Jensen” onde ele se propõe a investigar “sonhos criados por escritores imaginativos e por estes atribuídos a personagens no curso de uma história” (FREUD, 1976, v. IX, p. 17) e o faz da obra de Wilhelm Jensen que dá nome ao texto.
[2] Maria Antonieta Pereira, em “Boca Verde - cena e silêncio”, apresentada no Seminário Internacional Guimarães Rosa, afirma que o “X” de Ruysconcellos remete ao símbolo usado para marcar a incógnita nas operações matemáticas.” (DUARTE, 2000, p. 407) Gabriela Frota Reinaldo, em “A mitopoética na canção de Siruiz, de Grande Sertão: Veredas” ,indica o uso de enigma por Rosa ao comparar a canção de Siruiz com o Oráculo de Delfos, presente em Édipo Rei de Sófocles. (Confira DUARTE, 2000, p. 259)
[3] Associação já realizada por Vera Novis. (Confira NOVIS, 1989, p.96)
[4] Derrida propõe abalar a metafísica utilizando-se da linguagem corrente impregnada pela lógica da presença, fazendo uso do itálico sempre que julga necessário colocar em suspenso uma terminologia. O uso da linguagem disponível faz parte da estratégia econômica de sua atividade textual. Ele afirma não ter nenhum sentido para abalar a metafísica abandonar seus conceitos, visto não dispormos de “nenhuma linguagem - de nenhuma sintaxe, de nenhum léxico - que seja estranho a essa história; não podemos enunciar nenhuma proposição destruidora que não se tenha já visto obrigada a escorregar para a forma, para a lógica e para as postulações implícitas daquilo mesmo que gostaria de contestar.” (DERRIDA, 1976, p. 233) Derrida utiliza o “e” em itálico para desestabilizar a separação radical impelida pela metafísica no ocidente aos termos opostos, indicando com isto uma relação de permeabilidade entre eles. Deste ato decorre uma indecidibilidade, questão de que tratarei com mais vagar ao longo desta introdução.
[5] Conferir PALLOTINI, 1983, p. 13-47.
[6] Conferir FREUD, 1976, v. XIX, p. 39.
[7] Conferir FREUD, 1976, v. XIX, p. 73.
[8] Conforme pré-requisito de Ferdinand Brunetière (PALLOTINI, 1983, p. 29)
[9] Conferir a definição apresentada por Pallotini dos gêneros teatrais a partir da natureza dos obstáculos que se apresentam ao caminhar das vontades dos heróis dramáticos. (PALLOTINI, 1983, p. 29)
[10] Sônia Lopes assim descreve a reprodução das medusas da Classe Scyphozoa : “A alternância de gerações é o padrão comum de reprodução, como exemplificado a seguir, com base no ciclo de vida da espécie Aurelia aurita .A medusa que produz espermatozóides libera-os na água. Esses espermatozóides penetram na medusa ‘fêmea’, fecundando o óvulo. O ovo formado é liberado e forma uma larva livre-natante, a plânula. Esta fixa-se a um substrato, dando origem a um pequeno pólipo, que sofre um tipo de reprodução assexuada denominada estrobilação. Da estrobilação são formadas larvas natantes, que produzirão as medusas adultas. Neste ciclo de vida existe, portanto, uma forma polipóide reduzida, na qual ocorre reprodução assexuada, e uma forma medusóide desenvolvida, que tem reprodução sexuada.” (LOPES, 1992, p.195)

Primeiro ato - Cena 1 - O cego desejoso de ver e seu guia voyeur

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Dáfnis, filho de Hermes
Sua grande beleza e sua habilidade em tocar a flauta tornaram-no requestado e seguido por numerosas Ninfas. Uma dentre elas, Liquê, a luminosa, conseguiu dominá-lo. Ciumenta daquele que amava, arrancou-lhe um dia a promessa de jamais amar outra mulher senão ela, ameaçando-o, caso faltasse ao juramento, privá-lo imediatamente da visão. Um dia, durante uma caçada longínqua, Dáfnis chegou à frente de um soberbo palácio. A própria filha do rei veio acolher o reputado caçador e oferecer-lhe o favor da hospitalidade. Mas os grandes olhos do hóspede divino impressionaram a jovem virgem. Um dia enfeitou-se com todos os seus atavios e ousou apresentar-se diante dele. Dáfnis, lembrando-se de Liquê, tentou, a princípio, resistir àquela feiticeira. Sua fidelidade teve curta duração, porque a filha do rei,fazendo-o sorver, contra a vontade, um filtro, não tardou a obrigá-lo a ceder. Informada da traição de Dáfnis, a inexorável Liquê cumpriu sua promessa e tornou-o cego.
Privado da suave luz, Dáfnis tentou, mas em vão, consolar-se, fazendo ressoar as montanhas com os cantos de sua siringe. Pouco sobreviveu à terrível desgraça, pois, uma noite, como errasse ao acaso e sem guia, Dáfnis caiu do alto de um rochedo escarpado e morreu imediatamente. As Ninfas, suas companheiras de jogos, choraram sobre o seu corpo e levaram-no ao sepulcro. E Hermes, em recordação desse filho, fez jorrar uma fonte no próprio local em que ele tombara. (MEUNIER,
1989, p. 57)
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anti-. [Do gr. anti.] 1. Pref. = ‘ação contrária’, ‘oposição’, ‘contrariedade’, ‘contra’: anticlerical, antiácido, antidemocrático, antífem. 2. Fís. Pref. Utilizado diante de nome de uma partícula com algumas propriedades físicas simétricas.
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périplo. [Do gr. périplous, pelo lat. periplu.] S. m. 1. Navegação à volta de um continente [...] 2. Relação de uma viagem desse gênero.
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s-éia. [Do lat. -ea.] Suf. nom., fem. de -eu: coroidéia, européia.
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s-eu. [Do lat. -aeu-.] Suf. nom.= ‘relação’, ‘origem’, ‘procedência’: judeu (<>plêiades. [Do gr. pleiádos, pelo lat. pleiades.] S. f. pl. Astr. Grupo de sete estrelas visíveis a olho desarmado, que fazem parte do aglomerado galáctico aberto situado na constelação do Touro. [Sin. Pop.: sete-estrelo, sete-cabrinhas]. ~ V. plêiade.
(FERREIRA, p. 1986, 129, 1312, 621, 733, 1346, 1347.)

antiperipléia. S. f. 1. Ação contrária ao périplo original. S. m. 2. Oriundo do antipériplo. S. f. 3. Périplo no sentido inverso ao dos homens ou poetas célebres de onde procedemos. 3. A antidescrição de um périplo. 4. Viagem de volta: “Tudo para mim é viagem de volta.” “A gente na rua, puxando cego, concerne que nem se avançar navegando - ao contrário de todos.” (Guimarães Rosa, “Antiperipléia”, Terceiras Estórias, p. 13)
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No palco um doutor das “cidades” e um popular interiorano, “calungado, corcundado, cabeçudão” (ROSA, 1979, 14)[1], “rebuço de menino corcunda, feio como um caju e sua castanha”, conforme reaparece em Zingaresca (p. 190)[2].
Toda a cena é constituída pelo discurso do segundo dirigido ao primeiro, apenas ouvinte
[3]. Essa fala cria uma versão sobre os personagens, as circunstâncias que os aproximaram e o dúbio motivo desencadeante do monólogo. Dessa forma tomamos ciência da estória dirigidos pela fala do popular interiorano.
Assim ficamos sabendo que o citadino é um delegado
[4] e que o falante é um guia de cego, acossado por suspeitas populares que o responsabilizam pela queda mortal em despenhadeiro de seu último patrão, o cego Tomé.
O encontro destes dois personagens - um delegado e um suspeito por assassinato - sugere tratar-se de um inquérito policial. Mas não somos certificados disso. A oratória que nos mostra os fatos começa e termina aludindo a um convite da autoridade policial: para levá-lo “distante” (p. 13), “às suas cidades [...] para guia de cegos, servo de dono cego” (p. 16).
O discurso se apresenta como resposta a esse convite.
Após anunciar a proposta recebida, um pequeno parágrafo situa como empecilho ao deslocamento do orador para “as cidades” uma força impessoal se opondo ao seu livre trânsito: “E vão me deixar ir? Em dês que o meu cego Tomé se passou, me vexam, por mim puxam, desconfiam discorrendo. Terra de injustiças.” (p. 13).
A “terra de injustiças” exala uma violenta energia que maltrata (vexa); atrai, arrasta, arranca, retesa, provoca, incita, consome (“puxa”)
[5]; empuxa (“por mim puxam”), empurra, arrasta, abala (“empuxar”)[6]; não confia, julga (“desconfia”)[7]. Ela colide com o guia através do discurso: “discorrendo”. O uso de fricativas na frase citada no parágrafo anterior traz à cena a disseminação de cochichos que menciona o orador. O palavreado é assim uma força disseminante que corre para diversos lados, vagueia, passa, percorre, atravessa, pensa, medita, examina, analisa, raciocina (“discorrer”)[8].
A esse perigoso impacto o guia reage com a mesma arma: tomando a palavra. Descreve sua história recente associada à de Tomé, os acontecimentos que antecederam a morte do guia e desencadeia diferentes versões para o fato que o incrimina, gerando um labirinto de onde escapole. A fala, pela boca do guia, desbasta a agressiva energia que exala do continente das “injustiças” e abre uma rota por onde pode realizar seu périplo na direção contrária à das vagas das vozes populares.
O discurso se torna, assim, o responsável pelas peripécias
[9], pelos lances que alteram a face das coisas e modificam a ação e a situação dos personagens. Ele assume o lugar do protagonista da peça. Por isso assistir as cenas inscritas em “Antiperipléia” supõe também deixar as palavras encenarem, abrir cada uma e liberar as imagens que abarca, bem como permitir uma escuta sinestésica dos sons que produzem. E isto é válido para os outros contos que desfilarão pelos próximos capítulos.
Além de nos apresentarem o motivo desencadeante da fala, o parágrafo inicial e os quatro finais descrevem o comportamento do guia. Sua forma estratégica de se relacionar com a vida remete ao mecanismo de proteção do aparelho psíquico, indicado por Freud ao estudar a produção da memória. Segundo o pensamento de Freud, o sistema mental evita ser arrombado por grandes quantidades energéticas capazes de desestruturá-lo.
Para atender a tal objetivo, ele fragmenta a inevitável energia incidente, de forma a recebê-la em pequenas frações intermitentes. Além disso, reserva uma parte dela para instaurar um mecanismo relacionado à função secundária e ao princípio de realidade, que dificulta o fluxo livre da energia circulante no aparelho psíquico. Esse processo de funcionamento envolve a exploração e a escritura da différance
[10], supondo a temporização e o espaçamento, conforme leitura derridiana dessa teoria. Esse mecanismo retarda, adiando, o investimento perigoso capaz de levar o sistema psíquico à derrocada, constituindo em uma economia da morte. Voltemos à voz do guia:

Delongo [grifo nosso]. Tudo para mim é viagem de volta. Em qualquer ofício, não; o que eu até hoje tive, de que meio entendo e gosto, é ser guia de cego: esforço destino que me praz. [grifos nossos] (p.13)[...]
Só se inda hei outras coisas, por ter, continuadas de recomeçar; então Deus não é mundial? Temo é que eu é que seja terrível.[11] [...]
Decido. Pergunto por onde ando. Aceito, bem-procedidamente, no devagar de ir longe. Voltar, para fim de ida. Repenso, não penso. [...]
Vou, para guia de cegos, servo de senhor cego, vagavaz, habitual no diferente, com o senhor, Seô
Desconhecido. [Grifos nossos] ( p.16)
aa
A resposta do guia ao convite do delegado é antecedida pela ação de delongar - tornar longo, retardar, adiar, dilatar[12]. Esse procedimento é sinônimo de temporizar. Ele é reafirmado na expressão “no devagar de ir longe”, que envolve além da noção de tempo (“devagar”) a de distância (“longe”), intervalo, remetendo ao espaçamento. A repetição, o retorno ao mesmo, é reiterada de várias maneiras: recomeçar continuamente, “voltar para fim de ida”, perguntar por onde anda, “repensar”. Porém, volta-se ao mesmo mas na différance, o que é explicitado em “habitual no diferente” e no “Só se inda hei outras coisas, por ter, continuadas de recomeçar”, frases onde o divergente provém da contínua repetição do “idêntico”.
A marcação de frases e parágrafos curtos utilizada neste trecho do conto acentua uma idéia de contato e desligamento. Essa formatação remete à metáfora do bloco mágico utilizada por Freud para ilustrar o funcionamento intermitente do Sistema Perceptivo-Consciente, semelhante a um lançar “antenas” ao mundo externo para captar informações e logo a seguir retirá-las. Segundo Freud, esse processo é ritmado pelo inconsciente. O objetivo desta pulsação perceptiva é receber as energias exteriores em pequenas parcelas evanescentes que, por sua vez, são relidas numa escritura de dentro para fora, antes mesmo de se tornarem conscientes, a partir do inconsciente, num processo de repetição onde se perde o ‘original’, permanecendo o “habitual no diferente”.
O mesmo raciocínio se reapresenta quando no quarto parágrafo o guia dá uma versão do que pensa e de como se comporta a respeito da morte do cego Tomé:

Mas não cismo como foi que ele no barranco se derrubou, que rendeu
a alma. Decido? Divulgo: que as coisas começam deveras é por detrás, do que há,
recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas. Suspiros. Declaro,
agora, defino. (p. 13)
O que declara pensar é já a encenação de um discurso escorregadio e ambivalente. Primeiro afirma não desconfiar sobre a forma como o cego se precipitou. Porém trata-se de uma dúbia isenção, pois indica com o uso do pronome “se” e da escolha do verbo “render”, que o cego é o sujeito de sua própria queda fatal, da rendição de sua alma. Essa sugestão, que se espraia ao longo de seu relato, começa a ser disseminada já no segundo parágrafo com a utilização reflexiva do verbo passar, no sentido de morrer: “Em dês que o meu cego Tomé se passou” (p. 13).
Continuando, em resposta à pergunta “Decido?”, Prudencinhano apresenta a ação de divulgar, e o que propala cabe perfeitamente como uma descrição do funcionamento do aparelho mental em “Uma nota sobre o ‘Bloco Mágico’”, sobretudo a partir da leitura derridiana exposta em “Freud e a cena da escritura”. Vejamos o comentário de Derrida sobre a comparação feita por Freud entre as duas folhas do bloco, a de celulose e a de seda, e o sistema Perceptivo Consciente, bem como entre a tabuinha de cera e o Inconsciente responsável pela recordação, cotejo que lhe permite solucionar a dupla e contraditória exigência do aparelho mental de se apresentar virgem às percepções, ao mesmo tempo em que as retém na memória:

A escrita substitui a percepção antes mesmo desta aparecer a si própria. A “memória” ou a escrita são a abertura desse próprio aparecer. O “percebido” só se dá a ler no passado, abaixo da percepção e depois dela. (DERRIDA, p. 218-219)
E diz o guia: “as coisas começam deveras é por detrás, [no sistema mnêmico inconsciente] do que há, recurso [a escrita de dentro para fora introduz um novo curso do “percebido”]; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas.” E o que faz o guia a partir daí, num “agora” posterior ao acontecido, é declarar e definir, isto é, suplementar o “não cismo” do início da frase. A decisão dessa atitude afirmativa se realiza postergada pela frase sucinta: “Suspiros.” Ou seja, após respirar, pausar, espaçar. É possível ainda desdobrar as palavras “recurso” e “remate” como uma atitude de repetição. “Recurso”, por sua vez, traz à cena os significados de “proteção”, “solução”, “meio de provocar [...] a reforma ou a modificação de uma sentença judicial desfavorável” [13]. E “remate”, ato ou efeito de concluir, aquilo que remata, acabamento, ornamento, serifa, vinheta de remate, mate (xeque-mate)[14]. Assim é possível traduzir essa fala do guia que estamos analisando como: “As coisas começam [...] por detrás do que há”, da percepção, na escrita de dentro para fora, do inconsciente para o consciente, sendo concluídas a partir de remate, do acréscimo de acabamento, ornamento, ou seja, suplemento, que se acrescem como um recurso voltado para a proteção, constituindo um xeque-mate para protelar o jogo da vida, este passatempo de vida e morte.
“Remate” ainda pode ser interpretado como um neologismo indicando matar novamente. O termo, assim pensado, sugere tanto que a morte do cego possa ter ocorrido por assassinato, e que esse fato ao virar discurso se desvanece, como também remete à encenação da morte no mecanismo do espaçamento do aparelho mental que a economiza: “quando no remate acontecem, estão já desaparecidas”, mortas.
A associação do discurso e do comportamento do guia com o mecanismo de proteção do aparelho mental é reforçada quando percorremos os significados dos semas e vocábulos constitutivos dos dois neologismos que nomeiam o guia, e ao observamos a definição que ele dá à sua profissão: “esforço destino que me praz”.
Em “Zingaresca”, último conto de Terceiras Estórias, encontramos o mesmo guia de “Antiperipléia” com o nome de Dinhinhão[15], vocábulo passível de ser desdobrado no substantivo “dina”, no sufixo verbal “-inhar” e no nominativo “-ão”. Segundo o Aurélio “dina” é uma unidade de medida de força, simbolizada por “dyn”; “-inhar” indica uma ação freqüentativa, diminutiva e “-ão” ofício[16]. Por sua vez, a introdução do “h” na quarta letra reforça sonoramente a repetição. Reagrupando as partes podemos dizer que Dinhinhão significa ofício de repetidamente diminuir a força, sendo também onomatopéia de um motor capenga funcionando com um fluxo energético baixo e intermitente.
Em “Antiperipléia” seu nome é Prudencinhano. Trata-se de um neologismo formado pelo adjetivo “prudência” e pelos sufixos “-inhar” e “-ano”, este último equivalente de “-ão” na acepção de[17] “‘providência’, ‘origem’, característica’; ‘ofício’, profissão’; ‘relativo a’, ‘partidário de’” (FERREIRA, 1986, p. 136). Prudencinhano é assim uma descrição do narrador como aquele cuja característica/ofício (“-ano”) é realizar pequenas e repetidas ações (“-inhar”) “com moderação, comedimento, buscando evitar tudo o que acredita ser fonte de erro ou de dano” (prudência) (FERREIRA, 1986, p. 1410).
Ambos os nomes referem-se ao parcelamento de forças, o que os aproxima do mecanismo de economia da morte, do aparelho psíquico. Prudencinhano sugere algo mais: tanto a evitação de erro como de dano. Com isso remete a uma precaução em relação a perigos provenientes de duas fontes distintas quanto à localização: interna, suas próprias atitudes (“erro”), e externa, causadora de dano por impacto.
A explicação “esforço destino que me praz”, para a ocupação de guia de cego, pode ser traduzida como o esforço[18] de direcionar (“destino”) energia (“esforço”) que produz prazer, ou o prazeroso ato de desatinar[19] energia, fazê-la perder a razão, enlouquecer. Nesta última acepção, aproximamo-nos de uma situação inversa ao cuidadoso e parcimonioso comportamento do guia, sugerindo uma energia fluindo fora do controle. Guardemos essa definição para quando estivermos observando a relação de Prudencinhano com o cego. Fiquemos por ora com a primeira.
Ao acrescentar a sensação de prazer à relação com energia, somos remetidos ao princípio de prazer. Vejamos sua definição resumida por Laplanche e Pontalis:
“Um dos princípios que regem, segundo Freud, o funcionamento mental: a atividade psíquica no seu conjunto tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer. Na medida em que o desprazer está ligado ao aumento das quantidades de excitação e o prazer à sua redução, o princípio do prazer é um princípio econômico.”(LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 466)
Esta relação com um princípio, uma norma, é também indicada na forma como Prudencinhano explicita o aceite ao convite do delegado: “bem-procedidamente, no devagar de ir longe.” A palavra “procedidamente”, é composta a partir de “processo” e/ou “procedimento” e do sufixo adverbial “-mente”. Os dois substantivos remetem tanto a comportamentos como a fatos ou atos relacionados a procedimentos jurídicos, à lei. É possível interpretar “bem-procedidamente” como da maneira (“-mente”) estrita (bem) como a lei estabelece para tratar as causas em juízo[20], atendendo à norma, “no devagar de ir longe”, numa economia que podemos dizer que se volta para adiar a morte, prorrogando a vida.
Observando as condições de cegueira de Tomé e as atribuições do guia - de ver, orientar e dirigir o movimento do patrão -, e vinculando essas circunstâncias às estratégias de proteção e de economia de morte, de prudência e de prazer, indicadas no texto, é passível realizar duas associações.
A primeira relaciona o cego com as pulsões eróticas e de morte - sobretudo com o princípio de prazer, esse representante pulsional que, sendo uma transformação a partir de Eros do princípio de Nirvana, contém tanto a pulsão de morte como a de vida. A segunda associa a ação de guiar, dirigir de Prudencinhano ao princípio de realidade.
O cego assim pode ser comparado ao id e seu guia ao ego. Interessante notar a reversão nos nomes, pois o vocábulo “cego” contém o ego, o que por sinal, pode ser estendido ao id, pois este contém o ego que consiste em uma diferenciação do id a partir do Sistema Perceptivo.
Antes de continuar a percorrer “Antiperipléia”, é preciso trazer à cena algumas asserções de Freud sobre as pulsões, seus representantes e as instâncias do ego e do id, de maneira a antecipar elementos de um diálogo a ser desenvolvido mais à frente, onde se busca ler, suplementando, a estória narrada por Prudencinhano.
A tradução proposta do discurso do guia busca desdobrar as cenas que ele encerra nas palavras. Prudencinhano descreve os fatos economizando os vocábulos que os semi-encobrem. As palavras que utiliza dessa maneira funcionam como cápsulas protetoras da versão que dissemina ao(s) ouvinte(s).
Segundo Freud, as pulsões representam a energia proveniente de estímulos corporais que atingem o aparelho mental exigindo dele uma atuação no sentido de suprimir o estado de tensão reinante na fonte corporal.
A pulsão primordial é a de morte. Seu alvo é fazer o ser vivo retornar ao estado inorgânico de onde procedeu, o que indica uma tendência autodestrutiva nomeada por “princípio de Nirvana”, modificado no de prazer por outra pulsão, a de vida, que busca reunir e manter juntas as partes da substância viva. Quando a libido se volta para um objeto externo recebe o nome de Eros ou pulsão erótica. Ao se dirigir para o ego do sujeito é nomeada de pulsão autoconservadora.
A urgência sexual introduzida no sistema psíquico exige que o aparelho mental atue no sentido de atender às demandas de Eros, adiando a tarefa do princípio de Nirvana de esvair a totalidade da energia do sistema nervoso.
O princípio de prazer funciona como uma bússola para o id, o reservatório da libido, pois ao permitir a ele que perceba o desprazer, orienta-o a desviar a tensão de diversas maneiras.
Esses dois princípios manifestam-se em fluxos livres de energia[21]. Freud indica como uma das mais antigas e importantes funções do aparelho mental a sujeição da energia pulsional a partir de sua conversão em energia ligada (quiescente ou tônica). Essa transformação relaciona-se com o princípio de realidade, responsável pelo desenvolvimento das funções psíquicas da atenção, da notação (memória), do julgamento imparcial e do pensamento orientando a ação.
O princípio de realidade tenta modificar o de prazer e se impor como a norma reguladora do funcionamento mental. Sob sua regência “a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas toma por desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 470). A estratégia do princípio de realidade é prolongar, por acréscimo de sinuosidade, o caminho até a morte[22]. Porém o princípio do prazer não se deixa facilmente substituir pelo de realidade, e sua energia persiste em fluir livremente.
As proposições desenvolvidas por Freud são atravessadas por uma ambigüidade explícita[23], indecidibilidade que persiste quando trata do ego e do id, instâncias onde se localizam os princípios de Nirvana, de prazer e de realidade.
Em “O Ego e o id” Freud parte de sugestões do escritor George Groddeck de que somos ‘vividos’ por incontroláveis forças desconhecidas e nomeia essa “entidade” que nos vive como “id”.
Esse id psíquico, desconhecido e inconsciente, é o reservatório da libido. Dentro dele lutam Eros e o instinto de morte, o que inviabiliza a ele constituir uma vontade unificada. A influência direta do mundo externo, intermediada pelo aparelho Perceptivo-Consciente, o modificou produzindo o ego que, por isso, não se encontra nitidamente separado do id, estando com ele fundido em sua parte inferior.
O ego submete os processos mentais ao ‘teste da realidade”, controla o acesso à motilidade e adia as descargas motoras, interpondo processos de pensamento, fator fundamental para a transformação da energia livre em energia ligada.
O ego é assim uma “criatura fronteiriça” que tenta realizar uma mediação entre o id e o mundo, seja buscando tornar o id dócil ao mundo ou fazendo, através de sua atividade muscular, o mundo coincidir com os desejos do id. Entretanto, muitas vezes ele se apresenta como um escravo do id, assume suas ordens inconscientes e disfarça seus conflitos com a realidade.
O ego deve serviços, sob ameaça de perigo, ao mundo externo, à libido do id e à severidade do superego.[24]
Passemos agora ao miolo do discurso, que se encontra como que protegido pelas camadas dos parágrafos inicial e finais analisados, estratégia/formato também utilizado em “Desenredo”, conforme veremos no próximo capítulo. Esta arquitetura do texto o assemelha ao “corpo” do aparelho mental, diferenciado em sua periferia para proteger o id.
O âmago da fala de Prudencinhano pode ser dividido em três blocos conforme o assunto abordado. O primeiro se refere à relação entre Prudencinhano e o cego Tomé e ao comportamento de ambos. O segundo trata dos acontecimentos que antecederam a queda fatal de Tomé. O último apresenta hipóteses arroladas por Prudencinhano sobre as causas da precipitação em morte do cego.
De minha parte busco tanto desdobrar palavras para colocar à vista cenas lascivas que elas semi-escondem, como trabalhar com algumas estratégias discursivas de Prudencinhano, para então poder acrescentar meu suplemento ao território do texto - relativo à relação dos personagens como o ego e o id. Antecipando algumas considerações sobre a atuação retórica de Prudencinhano, penso que condensar imagens lúbricas em cápsulas de palavras constitui-se numa atitude preventiva contra reações de pudor do interlocutor, o delegado, e nossas, leitores.[25]
Segundo Prudencinhano, ele e Tomé andavam de cima para baixo, percorrendo[26] vilarejos e pequenas cidades[27]. Os dois se engatavam por um cajado[28]. Na frente ia o “calungado, corcundado, cabeçudão” (p. 14) Prudencinhano segurando uma ponta, com a mão umedecida por cuspe[29], puxando Tomé agarrado na outra extremidade do bastão, avançando na direção contrária à do povo[30], presumo que para facilitar o esmolar.
Por onde essa dupla rota e esfarrapada[31] passava, o cego despertava o desejo das mulheres “nas estradas” - possivelmente uma referência a madalenas. Elas se endoideciam por ele tanto porque sua barba o assemelhava a Jesus como pela garantia que sua cegueira lhes fornecia de manter indevassáveis suas formas e feições, donde se deduz que elas eram ou se achavam feias.
O cego, porém, queria saber se elas eram bonitas, ao que sempre respondia afirmativamente o guia Prudencinhano, seu tradutor da visualidade externa em palavras. O conceito de beleza do guia está atrelado ao movimento, às expressões fisionômicas, ao “sendo” e vivendo: “Eu informava que sendo. Para mim, cada mulher vive formosa: as roxas, pardas e brancas, nas estradas.” (p. 13)
A atitude do guia de facilitar a vazão erótica de Tomé ao confirmar a beleza das mulheres que o desejavam sugere a atuação do ego exposta por Freud em “O ego e o id”:

Ele [o ego] não é apenas um auxiliar do id; é também um escravo submisso que corteja o amor de seu senhor. Sempre que possível, tenta permanecer em bons termos com o id; veste as ordens Ics. do id com suas racionalizações Pcs.; finge que o id está mostrando obediência às admonições da realidade, mesmo quando, de fato, aquele permanece obstinado e inflexível; disfarça os conflitos do id com a realidade e, se possível, também os seus conflitos com o superego. Em sua posição a meio caminho entre o id e a realidade, muito freqüentemente se rende à tentação de tornar-se sincofanta, oportunista e mentiroso, tal como um político que percebe a verdade, mas deseja manter seu lugar no favor do povo. (FREUD, 1976, v. XIX, p. 73)
Confiante na assertiva de seu guia, o cego “se soberbava”, desfazia-se de sua aparência de mendigo esfarrapado se lavando com sabão, o que não devia ser de hábito, e vestia roupas compradas com o dinheiro de esmolas.[32] Enquanto Tomé se arrumava e namorava, o guia se embebedava, inspirava-se nas cenas lúbricas e se auto-erotizava.
Investiguemos de perto as frases que autorizam esta nossa versão da cena de vazão erótica. Logo após narrar a transfiguração do cego preparando-se para seus encontros com mulheres, diz o guia:

Sêo Tomé se soberbava [...]. Eu bebia
[...] Bebo, para impor em mim amores dos outros? Ralhavam, que, passado já a idade de guiar cego, à mão cuspida, mesmo eu assim calungado, corcundado, cabeçudão. [...] (p. 13-14)
Ao afirmar pela segunda vez que bebia, através de uma pergunta Prudencinhano sugere que se alcoolizava para se impor amores alheios. Segundo o Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 923), uma das acepções de “impor”, verbo presente na citação acima, é “inspirar, infundir”. Tendo em vista que bebe enquanto o cego se prepara para os encontros amorosos, beber inspirando-se, “à mão cuspida”, é associável à obtenção de orgasmo por auto-erotismo sob o influxo das atitudes amorosas entre o cego e suas namoradas.
Além disso, é bastante suspeita sua postura física, conforme ele mesmo relata: “calungado, corcundado, cabeçudão”. O neologismo “calungar” provém de “calunga”, divindade secundária do culto banto; fetiche dessa divindade; ou qualquer coisa de tamanho reduzido[33]. Fetiche é tanto o objeto ao qual se atribui poder sobrenatural, e se presta culto, como a pessoa a quem se venera e obedece às cegas[34]. “Calungado” pode ser interpretado como auto transformado em calunga, em fetiche a que se venera às cegas. “Corcundado”, por sua vez, acrescenta um movimento ao adjetivo “corcunda”, sugerindo a postura decorrente do ato de curvar-se, o que é reforçado pela acepção de “tornar-se coisa pequena” de “calunga”, também transformado em verbo. Cabeçudão é um aumentativo reiterado de cabeçudo: obstinado, teimoso, cabeça grande[35]. Pode também ser compreendido como uma metonímia de pênis, considerando-se cabeça como a “glande do pênis”, conforme acepção incluída no verbete do Aurélio[36].
A cena de “Calungado, corcundado, cabeçudão” é passível de nos remeter ao Prudencinhano obstinado, curvado sobre si, excitado, erotizando-se, calunga de si mesmo, fetiche a que obedece às cegas. Daí resultar em “à mão cuspida”. Esta postura física do guia elucida sua descrição em “Zingaresca”: “feio como um caju e sua castanha” (p. 190). Visto com o lado da castanha para baixo, tal fruto sugere um dorso masculino curvado sobre si, pelo fato de ser a parte superior mais volumosa, semelhante a ombros arqueados ampliando a volumetria da espádua.
Continuando o quadro, observamos Prudencinhano tanto revertendo a cena externa em sensações internas, transformando-a em inspiração, como evitando-a quando ela se caracteriza como uma força agressiva. Essas duas atitudes constituem estratégias distintas relacionadas com a economia da morte, do aparelho psíquico. Vejamos:

Povo sabe as ignorâncias. Então, eu, para também não ver, hei-de recordar o alheio? Bebo. Tomo, até me apagar, vejo outras coisas. [...] (p. 14)

O uso do verbo “tomar” em “Tomo, até me apagar [...]” tanto reitera beber, conduzindo ao desfalecer, como remete a “empunhar”, primeira acepção do Aurélio[37]. Esse significado acentua os traços da imagem de auto-erotismo e o trecho do parágrafo em análise pode então também dizer: Bebo. Empunho até me ausentar em um prazer íntimo, em um deleite sexual, até imaginar, sentir (ver) outras coisas, desfalecer-me (me apagar). As atitudes de beber e/ou auto-erotizar-se aproximam-se da economia realizada pelo aparelho psíquico em seu contato com o mundo externo via sistema perceptivo. Economia indicada por Freud na metáfora do bloco mágico onde o movimento exterior que imprime um gesto sobre a folha de seda, que o retém aderindo-o à cera da tabuinha localizada abaixo, é seguido pelo descolamento da folha então colada à cera, gerando um espaçamento entre os tempos de exposição à escrita oriunda do exterior. Assim a atitude de Prudencinhano de embebedar-se até se apagar evita a energia proveniente de fora, propagando-se no “ralhavam” e “nas ignorâncias”, bem como sua ação de auto-erotizar-se escoa sua libido, a energia oriunda de seu interior.
Os reincidentes encontros amorosos do cego sempre terminavam com o guia bêbado e desacordado, o cego aconselhando-o e invejando-o por poder ver suas concubinas.
Após descrever genericamente seu cotidiano em parceria com Tomé, Prudencinhano passa a narrar o último caso do patrão, que os reteve por um período maior do que o habitual na localidade onde produz seu relato ao delegado. Nessa particular aventura entram em cena, além do cego e seu guia, a mulher Sá Justa e seu marido, formando um quarteto amoroso.
Sá Justa, mulher muito feia, carente de namoro[38], provocante (“fatal” p. 14) e que gostava de criar confusão, “miar aos cães e latir aos gatos” (p. 14), deseja o cego assim que o vê, e de joelhos implora para Prudencinhano mentir-lhe, descrevendo-a como sendo bela.
Tomé, sabendo por seu guia das “belezas” da mulher, “passeou a mão nos braços dela, arrojo de usos. Soprou, quente como o olho da brasa.” (p. 14).
Desdobrando a frase a partir de acepções das palavras envolvidas, temos os vícios do cego e o clima da cena: com a habitual ousadia (“arrojo de usos”), ou seja, mulherengo, Tomé passeou a mão nos braços dela, estimulou-a, insinuou (“soprou”), ardente, voluptuoso (“quente”), como que guiado (“olho”)[39] pela paixão, excitação (“brasa”)[40], ou então, embriagado (“quente”)[41], soltou uma baforada (“soprou”) ardente, guiado por um tapa, uma tragada em cigarro de maconha (“brasa”)[42].
Se Prudencinhano não se arrepende de ter mentido ao cego, indica como inconveniente os sons a que ficava exposto, possivelmente pelo fato de o excitarem. Assim deduzimos a partir do uso da conjunção “mas”, exprimindo restrição, na frase: “Mas os dois respiravam, choraram, méis, airosos.” Pretendendo ampliar sua participação no episódio para além do auditivo, o guia ajeitava o local dos encontros amorosos de maneira a facilitar seu voyeurismo: “eu arrumando para ele antes o redor, o amodo e o acômodo, e estava de longe tomando conta.” (p. 14).
“Amodo” é neologismo formado pelo prefixo “a-”, (aproximação, direção), e pelo substantivo “modo”, (maneira, forma; na acepção jurídica refere-se a um encargo favorecendo terceiro, imposto pelo testador ou doador ao beneficiário do testamento ou doação[43]). “A modo”, por sua vez, significa com jeito, devagar. “Acômodo” é um adjetivo antigo sinônimo de oportuno, apto, cômodo. Assim temos Prudencinhano arrumando com jeito o local para os amantes de maneira aproximativa, direcionada, tornando-o oportuno e cômodo, para favorecê-lo como um terceiro beneficiário, viabilizando-o vigiar[44] e assistir.
Um relato de Prudencinhano sobre o que via, descrito ao afirmar que “falseava leal” (p. 14) sobre a beleza de Sá Justa, reforça a convicção de que era um voyeur: “os olhos dela permitiam brilhos, um quilate dos dentes, aquelas chispas, a suma cor das faces.” (p. 14-15). Essa descrição remete a um movimento oscilante de expressões faciais onde os olhos brilham, a boca entreabre-se permitindo visualizar rápidos fulgores (chispas) do ouro (quilate) dos dentes, e a face se colore, ruborizando. É possível imaginar que esse rosto expressava sensações de prazer assistidas por Prudencinhano.
O guia era uma “criatura fronteiriça”. Todos recorriam a ele para mediar alguma relação com o outro, o que faz lembrar a seguinte passagem de “O ego e o id”:

[...] vemos este mesmo ego como uma pobre criatura que deve serviços a três distintos senhores e, conseqüentemente, é ameaçado por três perigos: o mundo externo, a libido do id e a severidade do superego. [...] Como criatura fronteiriça, o ego tenta efetuar a mediação entre o mundo e o id, tornar o id dócil ao mundo e, por meio de sua atividade muscular, fazer o mundo coincidir com os desejos do id. (FREUD, 1976, v. XIX, p. 72)
O cego e Sá Justa precisavam de sua cumplicidade para articular, prover e vigiar seus encontros. Por isso o tratavam bem: com cachaças, comida e adiantamento da féria.
O marido da amásia buscava envolver Prudencinhano em seu plano de furtar o óbolo, enquanto com ele bebia. Provavelmente isso se dava enquanto o cego namorava sua esposa, um dos poucos momentos em que Tomé não devia requisitar o guia. Assim, também o marido devia assistir aos encontros amorosos. Sugere ainda Prudencinhano que o marido participava no conluio para convencer Tomé sobre os encantos de Sá Justa: “[...] aquela formosura que, nós três, no desafeio, a gente tinha tanto inventado.”[45]
Sá Justa necessitava de que o guia continuasse descrevendo ao cego a imagem de “suas porvindas belezas” (p. 14), aquelas a surgirem (por virem) em sua fisionomia nas futuras horas de prazer e gozo.[46]
A fala de Prudencinhano sobre esta situação - “Todos tendo precisão de mim, nos intervalos.” (p. 14) - insere mais uma vez a intermitência do aparelho mental e sugere a vida como encenação, pois intervalo também significa “Cada um dos momentos em que a cena [teatral] fica sem atores.” (FERREIRA, 1986, p. 960)
E nas pausas o cego “maldava” os encontros de Sá Justa com o guia, porfiava enciumado, somente se acalmando quando Prudencinhano revertia a discussão narrando as belezas da amante, ao que Tomé, “às barbas de truz”, tendo às vistas (“às barbas”) a excelência (“de truz”) da concubina, repetia na diferença seus momentos de gozo: “sorvia[47] também o deleite[48] de me descrever o que o amor” (p. 15). Ambos suplementavam a seu modo os acontecimentos.
O compartilhamento visual das relações sexuais entre o cego e sua amásia contamina os demais personagens, segundo a interpretação de Prudencinhano[49]. Algumas suas falas sugerem uma amizade lasciva entre ele e Tomé. Costuro-as de maneira a termos uma visão mais clara da relação entre os dois:

Eu provia e governava. [...] Deandávamos, lugar a lugar, [...].[...] Patrão meu, não. Eu regia - ele acompanhava: pegando cada um em ponta do bordão, ocado com recheios de chumbo. (p. 13) [...] Me dava vontade de leve nele montar, sem freio, sem espora... (p. 14) [...] Por mais urjo, me entenda. [...] O marido, terrível, supliquento, diz que eu é que fui o barregão... (p. 15)
Na visão do guia, o cego não era o patrão, pois quem provia e governava era ele, Prudencinhano. Analisando o neologismo “deandar”, formado pelo prefixo “de-” [50] mais o verbo “andar”, podemos traduzir “deandávamos” como andávamos de cima para baixo, “lugar a lugar”. Sendo uma das acepções do verbo “andar” “copular” [51], o movimento realizado por ambos sugere que mantinham relações sexuais, movimentando-se de cima para baixo, revezando-se nos papéis de atividade e receptividade tendo em vista que deandavam de “lugar a lugar”. Porém quando ambos empunhavam o fálico bordão ocado com recheios de chumbo, quem regia era Prudencinhano, Tomé acompanhava.
Mas Prudencinhano urgia por mais, desejava montar, libertino (“sem freio”) e amorosamente (“sem espora”) em seu patrão. Além dessas imagens, temos o marido de Sá Justa afirmando que o amancebado era o guia. E aí o relato em “Antiperipléia” deixa reticências, não ficando claro nesta acusação se Prudencinhano amasiava com o cego ou com Sá Justa. A lúbrica mulher, por sua vez, desavergonhadamente ameaça acusar o guia como o responsável pela morte de Tomé, se ele “não for ousado...” (p. 15) com ela.
Vejamos as hipóteses proliferadas por Prudencinhano sobre as causas da queda fatal do cego: ele resvalou enquanto andava solitário, “ciumado” e “braveando” na beira do precipício, ou então se suicidou ao descobrir a ‘má-figura’ de sua amante, pois de tanto querer ver “no derradeiro variava: falando que começava a tornar a enxergar” (p. 15); o marido empuxou-o, ansiando “por matar ou roubar” (p. 15); ou então, temerosa de vir a ter seus traços desvendados, a mulher empurrou-o pirambeira abaixo.
Após arrolar hipóteses sobre a causa da queda mortal de Tomé, pautadas em situações construídas por seu discurso e passíveis de terem motivado o acaso, o suicídio ou o assassinato do cego, Prudencinhano apresenta seu álibi, buscando safar-se das acusações que lhe dirige a “terra de injustiças”. Segundo ele, estava embriagado quando o cego despencou após encontro amoroso com Sá Justa: “Vinha de em delícias” (p. 14). Essa versão foi sendo construída ao longo de sua narrativa, na descrição de seu cotidiano com o patrão mulherengo e de suas habituais bebedeiras enquanto o cego namorava, indicando ser seu discurso concatenado e astucioso[52].
Além de descrever essas hipóteses, a fala de Prudencinhano apresenta duas características do locutor que geram suspeitas sobre sua responsabilidade pela morte de Tomé. Ele se diz com “culpas retapadas” (p. 13), recalcadas, e que são novamente aludidas quando reaparece em “Zingaresca” guiando um cego que carregava para ele uma cruz com a finalidade de pagar sua penitência devido à suspeição de ter matado “um homem precipitado” (p. 190).
Na página 13 Prudencinhano define-se como ananho. Esta palavra é um neologismo passível de ser pensado como constituído pelo prefixo “an-” ou “an(a)-”[53], mais o substantivo anho, cordeiro[54]. Assim ananho pode ser lido como a negação do cordeiro, a transformação do estado de cordeiro, a queda do superior, o estado de cordeiro, para algo inferior, talvez indique “lobo em pele de cordeiro”. A referência é de certa forma acentuada pela indecidibilidade contida nas frases, já no final do relato:

Tenho e não tenho cão, sabe? Me prendam! Me larguem! [...].
Só se inda hei outras coisas, por ter, continuadas de recomeçar; então Deus não é mundial? Temo é que eu é que seja terrível. (p. 15-16)
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Retoma aqui a dúvida de Grande sertão: veredas, a que versa sobre o pacto com o diabo, o cão, ou sua existência dentro do próprio homem. E as palavras referidas ao sagrado, em “Antiperipléia”, tomam um rumo peculiar.
A primeira que surge é “alma”, em “Delegado segure a alma do meu seô Tomé cego, se for capaz! Ele amasiava oculto com a mulher [...]” (p. 13) O termo no contexto do relato de Prudencinhano tanto se refere à alma no sentido de vida, indicando a inevitabilidade da morte, como também sugere a lubricidade de Tomé, sua incontrolável pulsão erótica. No parágrafo seguinte “alma” reaparece como na primeira acepção: “Mas não cismo como foi que ele no barranco se derrubou, que rendeu a alma.” (p. 13)
A segunda alusão ao religioso se dá na semelhança que as mulheres desejosas de Tomé viam entre sua barba e a de Jesus. Mas ele é um Cristo onde elas se apegavam pela possibilidade de salvação para seus anseios sexuais “guardados”, redenção da carne e não da alma, pois além de barbado ele era cego, portanto inviabilizado de desprezá-las pela aparência. E Sá Justa se ajoelhava, adotando a humilde postura de fervor utilizada para solicitar favores dos santos, aos pés de Prudencinhano, a quem solicitavam a intermediação junto a Tomé.[55]
A terceira aparece quando o guia nos apresenta Sá Justa como incontestavelmente feia: “Essa era a diversa, muito fulana: feia, feia apesar dos poderes de Deus.” (p. 14) Como Prudencinhano traçava seu conceito de beleza a partir da expressão em movimento, e recolhe de Sá Justa apenas a fugacidade de brilhos e cores - dos olhos, das chispas do ouro dos dentes e do rubor das faces - produzidos pelo gozo, conforme já vimos, podemos imaginar que Deus nesse contexto signifique o prazer orgástico. Na direção desse raciocínio a palavra escolhida para enaltecer a vermelhidão das faces - “suma” - tanto reduz e ironiza sua apologia das graças da mulher - pois indica que sua beleza facial se resume ao fato de estarem coradas - como remete os brilhos evanescentes à síntese da teologia medieval[56].
A associação entre a cópula e seus prazeres e Deus reaparece em “Palhaço da boca verde”. O protagonista do título falece após se relacionar sexualmente com Mema, sua ex-colega circense. A morte do protagonista é assim relatada: “[...] atesta-se porém que ele satisfeito sucumbiu, natural, de doença de Deus." (p. 118)
Duas outras vezes o guia pronuncia o nome divino. Primeiro quando afirma nada saber da morte do cego, tendo em vista estar embriagado na ocasião, e coloca nas mãos do supremo o destino: “Deus vê. Deus atonta e mata.” (p. 15) e, ao apelar para a extensão divina, já no arremate do conto, quando pergunta “então Deus não é mundial?” (p. 16), pedindo que intervenha a seu favor.
Interessante lembrar aqui que na mitologia Eros, responsável pelo amor, é também nomeado de “o deus cego” [57]. A associação do desastre de Tomé com sua vontade de ver aproxima essa tragédia com a reversão do mito que relata o romance entre Eros e Psiquê. Vejamos um resumo da estória.

O deus do amor conheceu Psiquê a partir de um pedido de vingança de sua mãe, Afrodite, enciumada por saber que os mortais a igualavam em beleza a esta jovem. Eros, porém, se apaixonou pela moça assim que a viu. Sem poder se identificar, para não atrair a cólera de Afrodite, passou a viver um grande amor com a formosa Psiquê omitindo suas formas à visão da amada. Surgia sempre invisível ou na escuridão da noite. “Um dia ela pediu a Eros para lhe revelar a beleza delicada que suas mãos adivinhavam, ao acariciar aquela face desconhecida” [58](MEUNIER, 1989, p. 73). O filho de Afrodite respondeu-lhe que para preservar sua felicidade ela apenas devia amá-lo, sem buscar saber o que era preciso ignorar.

Instigada pelas irmãs invejosas de sua ventura, Psiquê acendeu um candeeiro enquanto Eros dormia. Desvendou suas formas divinas e involuntariamente o acordou com uma gota de azeite fervente que deixou cair do candeeiro na nua espádua de Eros. Este, descobrindo a falha da amante, desencantou-a e voou, deixando-a vagar pelo mundo a sua procura e passar por penosas provações nas mãos de Afrodite, até por fim perdoá-la e voltar a viver com ela em um castelo no Olimpo, com a complacência de Zeus.

Na “rota e esfarrapada” versão rosiana do mito, “o deus cego”, semelhante a Jesus, para preservar as “em delícias” de seus romances, deve amar sem ver suas amásias, deixando-se ser conduzido pelas versões ficcionais de seu guia.
Ao longo do conto escutamos rumores da tragédia do cego. Esse retumbo gera uma impressão de força inevitável, de um destino associado à inquieta alma de Tomé, impossível de ser retida. Lubricidade e morte entrelaçam-se como duplas forças que o vivem: suas pulsões eróticas e as de morte.
Agrupemos algumas frases que falam da morte do cego em duas séries, para facilitar a análise. Elas carregam sons onomatopaicos do baque de seu corpo e acomodam em vocábulos algumas cenas desse movimento fatal. Compõem os últimos preparativos para então discorrer sobre o cego id e o guia ego.
Deandávamos, lugar a lugar, sem prevenir que já se estava por vir para aqui. (p. 13)[A mulher] queria fatal. [...] A vida não fica quieta. Até ele se despenhar no escuro, do barranco, mortal. (p. 14) Seô Tomé, às barbas de truz, sorvia também o deleite de me descrever o que o amor, ele não se desapaixonava. (p. 15)
O movimento da vida como uma cadência para a morte é sugerido na primeira e na terceira frases.
A relação Eros e Tanatos apresenta-se no querer fatal da mulher e na expressão “às barbas de truz” que, além da interpretação anterior, pode, nesse contexto catalisado pela indecidibilidade vida e morte, ser traduzida como às vistas (às barbas[59]) da queda[60], às vésperas de cair. A comunicação entre erotismo e morte é amalgamada na escolha da palavra “sorver”, que tanto é beber aos poucos, dizendo respeito ao prazer com que Tomé revivia sua experiência amorosa com Sá Justa, conforme já vimos como também significa “Atrair para baixo; tragar. [...] Submergir, afundar, subverter. [...] destruir, aniquilar, devastar.” (FERREIRA, 1986, p. 1615). Assim, às vésperas da queda no abismo, Tomé continuava apaixonado, sorvido para o aniquilamento.
Vejamos mais um intrigante bloco de citações:

Deixassem - e eu deduzia e concertava. Mas ninguém espera a esperança. Vão ao estopim no fim, às tantas e loucas. Por mais urjo; me entenda. Aqui, que ele se desastrou, os outros agravam de especular e me afrontar, que me deparo, de fecho para princípio, sem rio nem ponte.
Dia que deu má noite. Ele se errou, beira o precipício, caindo e breu que falecendo.
Ele, no ultimamente, já se estremecia, de pavores de amor, às vezes em que ele, apalpador, com fortes ânsias, manuseava a cara dela, oitivo, dedudo. Ar que acontece. (p. 15)

Tomé se desastra, se desnorteia do rumo dos astros, da bússola - lembremos que Freud diz que o princípio do prazer serve como uma bússola ao id - por manter suas esperanças de ver; por exceder, “às tantas e loucas”, indo ao estopim. A explosão tanto pode se referir ao excesso sexual como à morte, a detonação da vida, ou os dois.
E os sons continuam a ecoar: Dia “que deu” (queda) e “breu que”.
Mas olhemos atentamente com o que se depara Prudencinhano:
de fecho para princípio, sem rio nem ponte. (p. 15)
Para entendermos a frase enigmática temos que percorrer a oitava opção do verbete “fecho” no Aurélio. Ela apresenta uma cena muito interessante para nosso contexto:

Ruptura das serras pelos rios, que aí correm apertadamente ou por sob as arestas vivas das rochas, que apenas deixam uma abertura à superfície, quase sempre de 2 ou 3 m de largura [...] (FERREIRA, 1986, p. 765)
Essa ruptura cria um abismo, em cujo fundo corre o rio. Porém o guia se depara de fecho para o “princípio, sem rio nem ponte” (p. 15) - bela jogada de Guimarães, não um precipício. Só vejo uma saída para completar a paisagem desta cena. Prudencinhano se vê frente a frente com o princípio de Nirvana, de morte, sulcado pelo rio da pulsão erótica, com sua energia fluida, que para escoar vai abrindo caminho e se esvai, deixando seco o leito que rompeu as serras. O princípio é também o precipício da queda de Tomé: sem rio, com o fluxo extinto de Eros e o caminho aberto para a morte. Nessa situação o guia se vê de mãos atadas, sem poder intervir, “sem ponte”.
A última frase citada reforça essa versão: “Ar que acontece.” Se unirmos os dois primeiros vocábulos temos: “arquê acontece”, ou seja, aquilo que está no princípio, a pulsão de morte, vem à tona, acontece.
Eros e Tânatos manifestam-se nos derradeiros momentos de Tomé, “no ultimamente”. Sua agonia o estremece, apavora-o e convulsiona-o com fortes ânsias. Eros guardião da vida surge como o lacaio da morte, conforme nos diz Freud ao relacionar as pulsões autoconservadoras e de morte[61] com o desejo do organismo de retornar ao inorgânico, porém morrendo de seu próprio modo e não a partir de agressões exteriores. E Tomé despenca, desfaz-se no solo amalgamando-se às rochas. E também Ruysconcellos (“Palhaço da boca verde”) se precipita para os braços de Mema na direção da “morte de Deus”.
No cego movimento libidinoso de Tomé seu guia, bússola de sua navegação, afirma as belezas das amásias, abre os caminhos para a vazão de sua pulsão erótica e facilita “o domínio dos silenciosos, mas poderosos instintos de morte, que desejam ficar em paz e (incitados pelo princípio do prazer) fazer repousar Eros, o promotor de desordens” (FREUD, 1976, v. XIX p. 76). Porém, consigo, adia o dispêndio final, fica no voyeurismo e desdobra-se no auto-erotismo.
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Notas
[1] A partir desta referência bibliográfica, todas as demais relacionadas a Terceiras Estórias de Guimarães Rosa serão apenas indicadas pela página de forma a não quebrar o encadeamento do texto.
[2] Várias referências comuns a estes dois guias de cego autorizam-me a tratá-los como uma só pessoa: o de “Zingaresca” está novamente no sertão após passagem pelas cidades (conferir página 190), e afirma: “Pois dizem que matei um homem precipitado...” (p. 190).
[3] Recurso também utilizado em Grande Sertão: Veredas.
[4] Conferir página 3 do terceiro parágrafo: “Delegado segure a alma do meu seô Tomé cego, se for capaz.”
[5] Conferir verbete “puxar” In. FERREIRA, 1986, p. 1421.
[6] Conferir verbete “empuxar” In. FERREIRA, 1986, p. 639.
[7] Conferir verbete “desconfiar” In. FERREIRA, 1986, p. 552.
[8] Conferir FERREIRA, 1986, p. 396.
[9] Conferir verbete “peripécia”: “Lance de narrativa, peça teatral, poema, etc., que altera a face das coisas, e modifica a ação e a situação de personagens [...]” In. FERREIRA, 1986, p. 1311.
[10] Esta discussão encontra-se mais desenvolvida no capítulo teórico.
[11] “Deus não é mundial? Temo é que eu é que seja terrível.” Remete à questão de Riobaldo sobre o pacto com o diabo.
[12] Conferir verbete “dilatar” In. FERREIRA, 1986, p. 532.
[13] Conferir verbete “recurso” In. FERREIRA, 1986, p. 1466.
[14] Conferir verbete “remate” In. FERREIRA, 1986, p. 1481.
[15] Confira nota 2.
[16] Conferir os verbetes “dina”, “-inhar” e “-ão” In. FERREIRA, 1986, p. 591, 947 e136 respectivamente.
[17] Conferir FERREIRA, 1986, p. 125.
[18] Conferir FERREIRA, 1986, p. 694.
[19] Conferir no verbete “destino”: “sincopada de desatino”. (FERREIRA, 1986, p. 577.)
[20] Conferir a quarta acepção do verbete “procedimento” no Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 1395.)
[21] Nomeado por Freud de energia catéxica livremente móvel.
[22] Confira “Além do princípio de prazer”: FREUD, 1976, v. XVIII, p. 56.
[23] Freud faz uso do termo ambivalência, indicando sua cunhagem por Bleuler. Conferir nota 2 na página 152 de “Os Instintos e suas vicissitudes”. FREUD, 1976, v. XIV, p. 152.
[24] A noção de superego - essa diferenciação dentro do ego firmemente ligada à consciência, a partir da instalação em seu interior de objetos perdidos, sobretudo os relacionados às primeiras identificações do complexo de Édipo - não é desenvolvida no texto para não complicar desnecessariamente a análise de “Antiperipléia”, tendo em vista sua frouxidão na cena que busco representar. É verdade que se poderia pensar no delegado como uma sua corporificação, mas com uma característica complacente não habitual ao comportamento do superego. Aliás, é uma boa questão a orientar um percurso pelos contos de Tutaméia, a frouxidão dessa moral coercitiva interna viabilizando aos personagens acuados, sobretudo por forças externas, conquistarem uma rota no sentido da antiperipléia que aqui estamos desenvolvendo.
[25] A análise crítica da obra rosiana, inclusive, volta-se bem pouco para seus aspectos sensuais e eróticos; em contraposição encontramos em abundância sérios e produtivos estudos acompanhando fios que conduzem a questões filosóficas e metafísicas.
[26] Confira página 13: “[...] deandávamos, lugar a lugar, [...].”
[27] Tendo em vista que considera distantes “as cidades” do convite feito pelo delegado.
[28] “Pegando cada um em ponta de bordão, [...]” (p. 13)
[29] Confira página 13: “[Ralhavam, que, passado a idade de guiar cego, à mão cuspida, [...]”
[30] “A gente na rua, puxando cego, concerne que nem avançar navegando - ao contrário de todos.” (p. 13)
[31] “O roto só pode mesmo rir é do esfarrapado.”, afirma Prudencinhano referindo-se a si próprio e a Tomé. (p. 14).
[32] Conferir: “Seô Tomé se soberbava, lavava com sabão o corpo, pedia roupas de esmola.” (p. 13)
[33] Conferir verbete “calunga” In. FERREIRA, 1986, p. 323.
[34] Conferir verbete “fetiche” In. FERREIRA, 1986, p. 773.
[35] Conferir verbete “cabeçudo” In. FERREIRA, 1986, p. 301.
[36] Conferir verbete “cabeça” In. FERREIRA, 1986, p. 300.
[37] Conferir verbete “tomar” In. FERREIRA, 1986, p. 1686.
[38] Infiro isto tanto a partir da sentença: “A mulher viu o cego [...] com toda a força guardada”, quanto pelo fato de que o marido “desgostava dela [...] nem vinha em casa.” (p. 14)
[39] Conferir verbete “olho” In. FERREIRA, 1986, p. 1120.
[40] Conferir verbete “brasa” In. FERREIRA, 1986, p. 283.
[41] Conferir verbete “quente” In. FERREIRA, 1986, p. 1432.
[42] Conferir verbete “brasa” In. FERREIRA, 1986, p. 283.
[43] Conferir verbete “modo” In FERREIRA, 1986, p. 1147.
[44] “E quem vigia como eu?” (p. 14)
[45] A invenção oportunista de encantos de mulheres reaparece em “João Porém, o criador de perus”. Nessa estória, conterrâneos invejosos da situação financeira de João, visando a comprar seu pequeno terreiro, inventam que longe dali existe uma moça de nome Lindalice, “sacudida e vistosa”, que dele gostava. A estratégia de João oposta à do cego consiste em não vê-la - “e, o que não quer ver, é o melhor lince” (p. 75) - embora interessando-se por notícias a seu respeito. “Aceitara-a, indestruía-a.” (p. 75) e segue seu cotidiano, persistindo no trato dos perus, atitude que merece ser investigada como também significando uma opção pelo auto-erotismo, consistindo numa substituição funcional no sentido de economizar a morte. Diferente procedimento é adotado em “Reminisção”. Nessa estória Romão se apaixona por Nhemaria, a Drá, uma mulher “cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeva; primeiro sinisgra de magra, depois gorda de odre, sempre a própria figura do feio fora-da-lei.” (81) Gostou dela, “por querer também os avessos, [...]” (p. 81). O protagonista utiliza-se de uma lógica diversa da de Tomé, e a enxerga bela, conforme se indica no final do conto, nos instantes de sua morte, quando contamina os amigos que compartilham os derradeiros instantes de Drá: “Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados, viam, pedacinho de instante: o esboçoso, vislumbrança, ou transparência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima, futuramente...o rosto de Nhemaria.” (p. 83)
[46] Observar que “beleza” significa além de coisa bela, coisa “muito agradável, ou muito gostosa” (FERREIRA, 1986, p. 246).
[47] “sorver. [...] beber aos poucos [...] embeber-se [...] chupar, sugar, absorver [...]” (FERREIRA, 1986, p. 1615).
[48] “deleite. [...] Gozo íntimo e suave. 2. Prazer inteiro, pleno; delícia, deleitação.” (FERREIRA, 1986, p. 531).
[49] Vale aqui lembrar O Erotismo de Bataille. Diz ele em “Kinsey, a escória e o trabalho”: “As razões que se opõem à observação exterior da atividade genética não são apenas razões convencionais. A possibilidade de observarmos actos sexuais acha-se excluída pelo carácter contagioso de que estes se revestem. A palavra contágio não tem aqui nada a ver com o contágio das doenças microbianas. O contágio de que se trata é análogo ao que os bocejos ou os risos em nós provocam. Ver bocejar faz bocejar, ouvir ataques de riso dá-nos vontade de rir; se um ato sexual se processa ante nós, ele é suscetível de nos deixar excitados. [...] Podemos dizer que a actividade sexual, ou aquilo que a anuncia [...] põe facilmente aquele que testemunha em um estado de participação [...]”. (BATAILLE, 1988, p. 134)
[50] Conferir prefixo sde-. [Do lat.] Pref. = ‘movimento de cima para baixo’; [...] (FERREIRA, 1986, p. 522)
[51] Conferir o vocábulo “andar”: “[...] Ter relações sexuais; copular: ‘Gostava das mulheres, andava com elas, tinha-as nos braços’” (José Lins do Rego, Riacho Doce, p. 136) (FERREIRA, 1986, p. 117).
[52] No conto “Intruge-se” temos uma situação policial semelhante. Quio é o responsável pela condução de duas centenas e meia de bois à fazenda de seu Drães. Sendo um dos onze vaqueiros sob seu mando assassinado, ele precisa de uma versão para prestar conta do incidente a seu patrão. Para tanto passa a investigar o crime a seu modo, gerando uma situação indecidível onde não ficamos sabendo se encontrou o responsável pelo ocorrido ou se o produziu. No conto inclusive não é descartada a possibilidade de ele próprio ter sido o assassino. O nome da estória já traz essa ambigüidade ao associar os verbos intrujir (perceber, compreender), intrujar (sinônimo de intrujir, mas também lograr, enganar-se mutuamente, lograr-se e contar patanhas) e intrigar. Mais uma vez o discurso, e aqui também a ação de Quio, nos produz uma versão ficcional da própria ficção.
[53] Esses prefixos indicam, respectivamente, “negação” ou “privação” e “ação ou movimento contrário”, “mudança de estado”, “movimento de cima para baixo”, “repetição”, ou “intensidade”. (FERREIRA, 1986, p. 111.)
[54] Conferir FERREIRA, 1986, p. 123.
[55] Em “Arroio-das-antas” também ocorre o uso de um procedimento sacro com fins eróticos. O conto narra a estória de uma adolescente que busca refúgio no vilarejo Arroio-das-antas, povoado por pessoas idosas, após ter se enviuvado de marido que a traía com a namorada de seu irmão, que assassinou o cunhado. O conto é marcado pelo som da ladainha: “De déu em doendo” (p. 17), “fadada ao mal e nefandada”, “sorria, de dom” (p. 19). Velhinhas moradoras da vila, sensibilizadas com a tristeza de Drizilda, recitam litanias que funcionam como uma escritura no corpo da jovem, um rito de passagem que promove o desrecalque da rejeição e sofrimento do passado da adolescente, erotizando-a, ao mesmo tempo em que sublima as carências afetivas das anciãs com a fertilização de suas memórias e desejos pouco ou não realizados.O “puro”, “etéreo” e “sagrado” reverte-se em anseios corporais. Metáforas repetidas de umidade indicam o movimento que parte da renúncia erótica de Drizilda para o estado de excitação: arroio, palustre, “tanto vai a nada a flor” ( imagem que remete ao suicídio de Ofélia em Hamlet), aguadas as vistas, fluidos, aspergir, “ora chovia ou sol”, olhos de receber.Observamos o prazer da sublimação do erotismo das anciãs quando comovidas procuravam posicionar-se sobre a triste Drizilda. Narra o conto: “Sós, após, disputavam ainda, a bisbilhotar, em roda, as candeias acesas. Nenhuma delas ganhara a vida jamais o muito - que ignoravam que queriam - feito romance, outra maneira de alma. O que a gente esperava era a noite. Mas a velhice era-lhes portentosa lanterna, arrulhavam ao Espírito Santo.” [Grifos nossos] (P.18) Observe aqui a reincidência de alma com dúbio sentido, tanto remete ao espírito como ao uso lascivo do corpo.
[56] Conferir verbete “suma” In FERREIRA, 1986, p. 1628.
[57] Conferir “O deus cego” no verbete “deus” In FERREIRA, 1986, p. 581.
[58] Veja a semelhança da situação que se apresenta numa versão rústica e grotesca em: “[...] ele, apalpador, com fortes ânsias, manuseava a cara dela, oitivo, dedudo.” (p. 15)
[59] Conferir “à barba” no verbete “barba” In FERREIRA, 1986, p. 231.
[60] Truz é uma interjeição que imita o som de uma queda. Conferir FERREIRA, 1986, p. 1723.
[61] “...o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo. Assim, originalmente, esses guardiões da vida [instintos de autoconservação] eram também os lacaios da morte.” In: “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1976, v. XVIII, p. 57)