INTRODUÇÃO

Tutaméia me fascinou desde o primeiro contato quando já a acolhi como espaço de investigação. A cada nova leitura deste livro aumenta a certeza das dificuldades de manipular a potência do texto rosiano. Como a elaboração de uma dissertação é também o investimento de uma escritura no próprio corpo, não pude abrir mão desta escolha e seus riscos, numa atitude responsável com a temporalidade da minha existência.

Se permaneço nesta ousadia devo-o à disseminação do “pensamento desconstrutor” de Derrida por Evando Nascimento, durante sua estada como professor convidado no Mestrado de Estudos Literários na UFES, em 1997 e 1998. O encontro com Derrida levou-me a Freud, em especial a seus textos sobre o funcionamento do aparelho psíquico, as instâncias do ego e do id, as pulsões de morte e de vida e os princípios que expressam suas tendências.

Busquei cortar e expor uma camada de Terceiras Estórias fazendo uso tanto de “operadores textuais” pensados a partir da leitura de Freud por Derrida que radicalizam alguns raciocínios do pai da psicanálise, seus “atos de coragem” conforme Freud os denominava, como também lancei mão de conceitos freudianos que envolvem alguns princípios questionados por Derrida, como é o caso da função primária subjacente à teoria que afirma que a tendência da pulsão de morte para a destruição expressa o princípio mais radical do funcionamento psíquico.

Recorri a um e a outro autor conforme a solicitação da estória rosiana que percorri e interpretei fazendo uso da psicanálise tanto de forma conceitual como de forma metafórica. Ciente do risco que corri ao ler os textos freudianos como se também fossem literários[1], procurei transbordar as estórias de Tutaméia que investiguei para o território da teoria psicanalítica.

Passo agora a uma breve descrição das cenas que assisti em alguns contos de Terceiras Estórias. Em anexo desenvolvo o pensamento de Derrida e Freud de onde retirei os instrumentais que me possibilitaram articular algumas imagens e visualizá-las em movimento.

Selecionei como área de mergulho os contos “Antiperipléia”, “Desenredo”, “Azo de Almirante” e “O Palhaço da Boca Verde”. O uso do verbo mergulhar não diz respeito a uma profundidade e sim à irrupção de um ambiente líquido metafórico nessas estórias que pretendo acompanhar e parcialmente explicar. Nelas observo o movimento de embarcações, ora explicitadas como objetos de cena nas canoas de “Azo de Almirante”, ora sob a forma de metáforas, como a presente no título de “Antiperipléia” e no corpo do texto de “Desenredo”, onde imagens recorrentes de barcos em movimento indicam, de maneira figurada, as sensações e as alternativas plasmadas pelo protagonista Jó Joaquim para conseguir verter suas pulsões eróticas em circunstâncias adversas.

A água é focalizada ora em sua superfície, uma espécie de chão móvel a ser conquistado, ora como um meio penetrável, uma voragem. Na primeira situação o relacionamento com a água assemelha-se aos processos mentais onde a energia psíquica é ligada, controlada pelo ego, administrada pelo princípio de realidade. Nos casos em que ocorre imersão é como se deparássemos com o livre fluir da energia inconsciente, das forças oriundas das pulsões e dos processos oníricos.

Em “Antiperipléia”, o guia de cego Prudencinhano realiza um périplo figurativo no sentido inverso daquele que seu patrão efetua e que o leva à morte por queda em despenhadeiro. A navegação de Prudencinhano na contramão da de seu patrão preserva-lhe a vida.

Em “Desenredo”, a afirmativa de que “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel” (ROSA, 1979, p. 38) insere a representação de um precipício ambíguo por possuir uma superfície virtual.

A estória de “Azo de Almirante” se faz a partir de uma enchente que inunda o texto, move Hetério a improvisar e comandar uma equipe de resgate e tira as vidas de sua mulher e filhas. O percurso do protagonista ao longo do conto se faz na face do rio, repetindo na diferença a atividade de barqueiro até o desfecho final, quando sua canoa é perfurada em uma itaipava e ele, risonho e ferido, morre no “brejo da beira” (ROSA, 1979, p. 26). Itaipava, “recife de pedra que atravessa um rio de margem a margem, causando o desnivelamento da correnteza” (FERREIRA, 1986, p. 974), corresponde à elevação do que está no fundo cuja insurgência aumenta a velocidade do fluxo da água. A submersão e morte do protagonista ao final do conto indicam um arrombamento do espelho d’água onde navegava. Esta cena derradeira abre o território líquido vislumbrado em o “Palhaço da Boca Verde”.

Nessa estória aflora dos nomes dos três principais personagens uma série de imagens de celenterados, águas-vivas fazendo com que um mundo onírico submerso se apresente como uma camada do texto. A começar pela sonoridade do nome do protagonista X. Ruysconcellos, possível de ser transcrita como uma equação matemática, envolvendo ao mesmo tempo um enigma: “O X. da questão é: Who is com cellos?” [2] Este celenterado sai em busca de Ona Pomona. Pomona, deusa dos pomares[3], é também anagrama de ponom, água-viva. O palhaço Ruysconcellos termina morrendo nos braços de Mema, moradora de Sete Lagoas, pressentida como “um vinagre perfumoso” (ROSA, 1979, p. 116). Vinagre é sinônimo de água-viva. Em determinado momento o protagonista relaciona Ona a Mema balbuciando “-···... nona... nopoma... nema” (ROSA, 1979, p. 117). No final da cadeia associativa entre as duas personagens, no lugar de Mema, encontramos nema, isto é, filamento que remete a nematocisto, célula característica de celenterados,

formada por uma bolsa onde se encontra um filamento imerso em líquido urticante. A célula urticante, ou nematocisto, possui um dispositivo, (cnodocílio) disparador de todo o mecanismo. Quando um objeto flutuante ou natante toca o cnidocílio, o filamento é lançado para fora, junto com o líquido urticante, provocando queimaduras. (FERREIRA, 1986, p. 1188)

Esta possibilidade de interpretação das imagens emergentes dos nomes dos personagens é reforçada pelo enredo do conto, e será desenvolvida no capítulo referente a esta estória. Cabe aqui uma citação de “Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens”, de Ana Maria Machado:

O que nos revela uma análise da escrita rosiana é que, no engendramento de seu texto, no trabalho ativo da escrita, o Nome próprio (particularmente o dos personagens) desempenha um papel fundamental: ele guarda dentro de si, sob um aspecto latente, uma profusão de semas que se vão manifestando aqui e ali, através do texto. Nesse processo, como foi amplamente demonstrado, o Nome se desintegra em pequenas unidades de significação. Em torno a cada uma dessas unidades (ou as suas múltiplas combinações), formam-se as frases do texto, cristaliza-se a escrita, desenvolve-se a narrativa. As sucessivas associações, condensações e deslocamentos, aproximam o trabalho do texto do trabalho do sonho na descrição freudiana [...] (MACHADO, 1976, p. 195)

Assim, remeto as estórias que selecionei em Tutaméia a acontecimentos ao mesmo tempo exterior e interior[4], transcrevendo as peripécias dos personagens também como encenações de eventos em cenário psíquico, sobretudo dentro de uma organização onírica.

Acompanho prioritariamente nestes contos a ação dramática produzida a partir de uma performance das pulsões eróticas e de morte. Pulsões que se norteiam pelos princípios de prazer, de realidade, ou de nirvana em um meio circundante, desmobilizando as fronteiras entre os espaços interior e exterior, da realidade psíquica e do mundo externo do protagonista, sem as desfazer de todo. Encenação que tanto prorroga a vida, apresentando-se na metáfora da embarcação mantida na superfície, relacionada a um fluir controlado pelo princípio de realidade sobre a livre corrente do rio, imagem figurada correspondente às pulsões, como também facilita a morte, sendo indicada no ato de arrombamento da pele da água e na queda em abismo, numa entrega ao fluxo pulsional e ao “deslizar indefinido de significações” do inconsciente (LAPLANCHE E PONTALIS, 1983, P. 461).

É preciso salientar que em “Antiperipléia” e “Desenredo” o princípio de realidade age no sentido de viabilizar a realização da pulsão erótica. Para tanto dribla o rígido controle social imposto por padrões morais e por comportamentos mesquinhos demonstrado pelos moradores das pequenas localidades onde as estórias são enredadas. O calote se faz jogando com a linguagem, seja proliferando hipóteses, no caso do guia de cego, que assim se defende da acusação de ser o responsável pela morte de seu patrão, ou suplementando a tradição ocidental, conforme atitude de Jó Joaquim para inverter o enredo da estória e da memória da coercitiva população. Em ambos os casos a pulsão erótica não deixa de fluir, ainda que adote um novo caminho, através da escopofilia assumida por Prudencinhano, ou sendo postergada, conforme acontece na estória do paciente Jó Joaquim.

A reversão de energia fluente em força ligada é, portanto, ambivalente. Ela guia a navegação do fluxo da pulsão erótica através de um princípio de realidade, neste sentido liga, aquiesce, mas também propicia seu curso, comandado pelo princípio do prazer.

A proposta de leitura suplementada de Tutaméia
Tentarei expor as estórias escolhidas como dois atos de uma peça teatral, cada qual dividido em duas cenas principais.
Primeiro ato - cena 1: prólogo
O primeiro ato diz respeito ao “passo momentoso” do surgimento do princípio de realidade a serviço do de prazer.
“Antiperipléia” é a cena inicial. Nela atuam os burlescos Prudencinhano e Tomé, o cego. A ação dramática decorre do conflito entre a atitude libidinosa do cego e outras vontades em jogo, culminando com sua morte. Se levarmos em conta a definição de Hegel, expressa por Pallotini[5], de que na base da ação dramática encontra-se uma pessoa moral, ou seja, um indivíduo livre, pensante, responsável por seus atos, consciente dos conflitos e das possíveis conseqüências e do resultado final que suas atitudes instauram, esta cena é um prólogo. Indica um momento anterior à constituição do drama, na medida em que não se tem uma vontade desenvolvida e sim apenas a vazão de um desejo. “Antiperipléia” como o prólogo é uma cena discursiva e introdutória onde são fornecidos “dados prévios elucidativos do enredo da peça” (FERREIRA, 1986, p. 1400). Ela é composta por um ambíguo depoimento de Prudencinhano, proliferativo de suposições sobre as circunstâncias da morte do cego Tomé, a um delegado possivelmente investigador do caso. Esse relato que salva o guia de cego Prudencinhano, a ponto de receber da autoridade ouvinte um convite para exercer seu ofício na cidade grande, apresenta o cego como um libidinoso que dá vazão a suas pulsões sexuais com mulheres que o desejam, desde que bonitas. Elas, por sua vez, se enamoravam de Tomé, inclusive por inverterem em qualidade sua deficiência, pois a cegueira preservava em sigilo suas formas e feições nem sempre belas. Prudencinhano alcovitava os encontros, provinha o cego de concubinas e governava as relações amorosas. Para tanto, desestabilizava o conceito de beleza tão caro ao seu patrão e à metafísica ocidental, transformando-o em um movimento, tornando-o relativo.

A encenação é marcada pela indecidibilidade. Vários termos oscilam com seu oposto. Assim temos a reversão de “defeito” em “qualidade”, de “feiúra” em “beleza”, de “alma” em “pulsão erótica”, de Eros em pulsão de morte e outras mais como serão demonstradas na análise desse conto, sendo a principal ambigüidade a que se estabelece entre quem guia quem: Prudencinhano o cego patrão ou vice-versa.

Vejo os dois personagens também em um cenário psíquico e os leio como o ego e o id, e às suas atitudes como o princípio de prazer e o de realidade.

Segundo Freud o id é possível de ser representado como “se achando sob o domínio dos silenciosos mas poderosos instintos [pulsões] de morte, que desejam ficar em paz e (incitados pelo princípio do prazer) fazer repousar Eros, o promotor de desordens (...)” (FREUD, 1976, v. XIX, p. 76). O ego, por sua vez, é indicado como uma criatura fronteiriça, como a extensão superficial modificada do id a partir da influência direta do mundo exterior, por intermédio do Pcpt.-Cs.[6] Ele tenta efetuar uma mediação entre o mundo e o id, buscando torná-lo dócil ao mundo e, por meio de atividade muscular, fazer o mundo coincidir com os seus desejos[7]. Empenha-se para substituir o princípio de prazer que reina no id pelo de realidade. A percepção representa para o ego o papel que no id cabe às pulsões. A ambigüidade entre quem comanda quem é expressa por Freud no seguinte parágrafo:

A importância funcional do ego se manifesta no fato de que, normalmente, o controle sobre as abordagens à motilidade compete a ele. Assim, em sua relação com o id, ele é como um cavaleiro que tem de manter controlada a força superior do cavalo, com a diferença de que o cavalo tenta fazê-lo com sua própria força, enquanto que o ego utiliza forças tomadas de empréstimo. A analogia pode ser levada um pouco além. Com freqüência um cavaleiro, se não deseja ver-se separado do cavalo, é obrigado a conduzi-lo onde este quer ir; da mesma maneira, o ego tem o hábito de transformar em ação a vontade do id, como se fosse a sua própria. (FREUD, 1976, v. XIX, p. 39)

O livre fluxo da libido representado pelo cego Tomé, que quer o desvario de ver suas amantes para crer em sua beleza, precipitam-no em abismo. Seu guia, suspeito de ter propiciado a queda fatal, salva-se pelo discurso marcado pela repetição e pela différance, pelo processo secundário, pelo princípio de realidade. Ele, Prudencinhano, age como a energia quiescente, ligada. Em seu relato apresenta outra sua atitude, a escopofilia, atividade que coloca o ato de olhar como um substituto da relação sexual, tornando-se assim remédio que o salva da morte. A vontade de uso diferenciado da visão pelo cego Tomé, vontade que o leva à morte, apresenta o sentido da vista como uma droga. A visão, assim, pode ser equiparada a um phármakon oscilante entre a energia livre e a energia ligada, entre o desvario e o princípio de realidade, entre o remédio e a droga. Em Prudencinhano salva por possibilitar o prazer, em Tomé mata por se contrapor à característica vicissitudinária da pulsão erótica, por empecer-lhe, por não permitir o gozo com o que se tem à mão.

Primeiro ato - cena 2
A segunda cena apresenta-nos Jó Joaquim. Este, encantado pela aparição de uma linda mulher casada, consegue contornar os perigos de uma relação proibida e vigiada pelo marido violento e pela população do vilarejo onde mora, tornando-se um herói dramático ao arquitetar seu destino[8]. Ele, diferentemente de Tomé, possui vontade, ou seja, um desejo e um senso de realidade. E os utiliza de forma a não compor uma tragédia como em “Antiperipléia”. Autor de um drama, na medida em que consegue enfrentar os obstáculos colocados entre seu desejo e a possibilidade de realizá-lo, ou talvez e também autor de uma comédia, pois adéqua os obstáculos que precisa transpor para dar vazão à sua pulsão erótica com o objeto que escolheu.[9] Jó se lança no abismal de sua paixão, porém criando uma superfície virtual passível de ser navegada “a barquinhos de papel”. Fazendo uso de leituras suplementadas de textos da tradição ocidental, Jó Joaquim contorna os empecilhos ao livre fluxo de suas pulsões eróticas, sem abrir guarda para a morte. Esse personagem não se encontra cindido em dois, como na estória anterior, Jó Joaquim indica, ao contrário, uma relação funcional entre o princípio de realidade e o de prazer, adiando a morte.

Segundo ato
O segundo ato apresenta a repetição na différance até o derradeiro dispêndio, o retorno ao anorgânico, a separação do soma e da célula germinal: a hora e a vez da pulsão de morte.
A primeira cena diz respeito à repetição que tanto adia a morte, encenando-a, como facilita o caminho até o arrombamento final. A segunda enfoca este momento extremo: a gestação do dispêndio final governada pelo livre fluxo de sentidos, pela lógica do inconsciente, apresentando uma série de imagens imersas no conto que se intercambiam, condensadas de sentidos impregnados pela tradição ocidental.
Segundo ato – cena 1
A cena inicial é a estória de Hetério, nome que combina os significados sublime, etéreo, e a reunião ou ação do diferente. Esse personagem se destaca como herói numa enchente em que toma a iniciativa de juntar canoas e pessoas com o fito de socorrer os desabrigados. Ela, porém não salva sua mulher e suas filhas, carregadas e tragadas pelo rio. A partir de então sua vida repete na diferença o ofício de barqueiro, servindo de junção entre margens em diversas situações, ocupação que remete à atividade de ligação e reunião de Eros, inscrita em seu nome. Hetério é uma palavra composta pelo sufixo nominal “io” que indica reunião ou tendência, e pelo elemento de composição “heter(o)”, procedente do grego, significando outro, diferente. Hetério então pode ser entendido como a tendência para reunir o diferente.
O primeiro desdobramento profissional de sua iniciativa heróica foi a de transpor gente e carga no local onde a destruição da ponte Fôa interrompeu uma estrada. Fô é o nome de Buda na China. Se ligarmos a ele o estado de Nirvana, que segundo o budismo consiste na “ausência total de sofrimento; paz e plenitude a que se chega por evasão de si que é a realização da sabedoria” (FERREIRA, 1986, p. 1194), associado por Freud à pulsão de morte, temos a atividade do barqueiro Hetério substituindo na diferença a morte. Reconstruída a ponte, sobe o rio ele passa a transportar debilitados e esperançosos peregrinos em busca de salvação, ou seja, do adiamento da morte, para a margem do rio onde vive uma “mulher milagreira jejuadora”. Com a mudança da beata Hetério se dedica a mascatear rio acima, rio abaixo, até se deslocar para um local onde o Governo construía uma barreira. A região, onde o fluxo do rio se vê represado, é descrita como “remanso de imenso lago”, “espelho”, “represa, lisa - que não retinha, contudo, corpos de afogadas”, permitindo o retorno à tona da memória da reprimida estória de perda de mulher e filhas.
Com ele passa a trabalhar Normão, a grande norma, podendo ser pensada como a pulsão de morte. Após viver na diferença o resgate não oferecido à sua mulher e filhas, Hetéreo morre ferido, náufrago e risonho após combate para raptar a mulher de Normão, aprisionada pelo próprio pai em sua fazenda. E sua agonia transcorre feliz enquanto ele vai se confundindo com a correnteza do rio por entre pedras, até se aquietar atolado no “brejo da beira”.
Segundo ato – cena 2
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A última cena é um zoom neste momento precipitante.
Expõe a estória do palhaço Ruysconcellos no momento de transcrição de suas atitudes econômicas da morte, através do onanismo e da vivência de um sublimado amor a Ona, para um arrebatado encontro com Mema e a morte.
A estória é ritmada pela decadência dos corpos desses dois atores, em um ambiente líquido e a uma temperatura favorável às reações químicas, onde imagens afloram e se intercambiam a partir de semelhanças formais, relatando, através de metáforas, a fase de onanismo, seguida pela constituição de uma bissexualidade, quando o escudo do “X.”, no nome de Ruysconcellos, se apresenta como Xênio, estrangeiro, o outro, e ele perde a guarda sobre Mema, a que vai esverdeando ao redor dos lábios ao longo do conto, remetida a nematocisto, esta bolsa contendo ferrão e veneno, e também a Medusa.
A imagem abaulada do circo sugere e se metamorfoseia em uma água-viva, sobretudo a caravela que é uma colônia composta de vários elementos, e as águas-vivas da classe Scyphozoa, cujo padrão de reprodução alterna gerações assexuadas e sexuadas.[10] Assim também Ruysconcellos alterna seu ciclo sexual. Ele deixa Ona Pomona - esta cujo nome remete duplamente a onanismo e fruto - após rasgar seu retrato, e transfere para Mema seu foco de atenção. Ela retém a mala com os apetrechos da indumentária do palhaço Dá-o-Galo, sua herança genética. Comparada a um caroço, germinal, Mesma difere de Pomona, o fruto. Como uma viúva-negra, com seus venenos assassinos, sendo ao mesmo tempo dotada de nematocisto, Mema recebe em seus braços o palhaço, e os dois vivem uma cena semelhante à já citada passagem de Freud, e vale aqui reavivá-la, sobre a luta travada pelo princípio de prazer contra a tendência de Eros em introduzir novas tensões energéticas, contrariando o princípio de constância, sobretudo sob

“a forma específica de satisfação, em que todas as exigências componentes convergem - pela descarga das substâncias sexuais, que são veículos saturados, por assim dizer, de tensões eróticas. A ejeção das substâncias sexuais no ato sexual corresponde, em certo sentido, à separação do soma e do plasma germinal.
Isto explica a semelhança do estado que se segue à satisfação sexual completa com o ato da cópula, e o fato de a morte coincidir com o ato da cópula em alguns animais inferiores. Essas criaturas morrem no ato da reprodução porque, após Eros ter sido eliminado através do processo de satisfação, o instinto [pulsão] de morte fica com as mãos livres para realizar seus objetivos.” (FREUD, 1976, v. XIX, p. 63),

Mema esverdeia a boca do palhaço, esta característica de Ruysconcellos apenas citada no título da estória e trazida à tona neste desfecho. Final onde novamente germina o espetáculo, que se prolifera em estórias de terceiros sobre o que surge, com o arrombamento da porta do quarto. Momento e local onde se presencia os desnudos corpos que atuavam sobre a cama, este outro espaço picadeiro, “arena ou palco da morte”.
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Notas
[1] O próprio Freud de uma certa maneira autoriza o trânsito entre a psicanálise e a literatura, tendo em vista que muitas vezes ele parte de textos literários, que lê como cenas psíquicas, para desenvolver um pensamento psicanalítico. Como exemplo podemos citar a utilização que faz de O Homem da Areia de E.T.A. Hoffmann para subsidiar o desenvolvimento de suas idéias acerca do tema do “estranho” no artigo de mesmo nome (FREUD, 1976, v. XVII, p. 273/318). Outro exemplo encontra-se em seu texto “‘Gradiva’ de Jensen” onde ele se propõe a investigar “sonhos criados por escritores imaginativos e por estes atribuídos a personagens no curso de uma história” (FREUD, 1976, v. IX, p. 17) e o faz da obra de Wilhelm Jensen que dá nome ao texto.
[2] Maria Antonieta Pereira, em “Boca Verde - cena e silêncio”, apresentada no Seminário Internacional Guimarães Rosa, afirma que o “X” de Ruysconcellos remete ao símbolo usado para marcar a incógnita nas operações matemáticas.” (DUARTE, 2000, p. 407) Gabriela Frota Reinaldo, em “A mitopoética na canção de Siruiz, de Grande Sertão: Veredas” ,indica o uso de enigma por Rosa ao comparar a canção de Siruiz com o Oráculo de Delfos, presente em Édipo Rei de Sófocles. (Confira DUARTE, 2000, p. 259)
[3] Associação já realizada por Vera Novis. (Confira NOVIS, 1989, p.96)
[4] Derrida propõe abalar a metafísica utilizando-se da linguagem corrente impregnada pela lógica da presença, fazendo uso do itálico sempre que julga necessário colocar em suspenso uma terminologia. O uso da linguagem disponível faz parte da estratégia econômica de sua atividade textual. Ele afirma não ter nenhum sentido para abalar a metafísica abandonar seus conceitos, visto não dispormos de “nenhuma linguagem - de nenhuma sintaxe, de nenhum léxico - que seja estranho a essa história; não podemos enunciar nenhuma proposição destruidora que não se tenha já visto obrigada a escorregar para a forma, para a lógica e para as postulações implícitas daquilo mesmo que gostaria de contestar.” (DERRIDA, 1976, p. 233) Derrida utiliza o “e” em itálico para desestabilizar a separação radical impelida pela metafísica no ocidente aos termos opostos, indicando com isto uma relação de permeabilidade entre eles. Deste ato decorre uma indecidibilidade, questão de que tratarei com mais vagar ao longo desta introdução.
[5] Conferir PALLOTINI, 1983, p. 13-47.
[6] Conferir FREUD, 1976, v. XIX, p. 39.
[7] Conferir FREUD, 1976, v. XIX, p. 73.
[8] Conforme pré-requisito de Ferdinand Brunetière (PALLOTINI, 1983, p. 29)
[9] Conferir a definição apresentada por Pallotini dos gêneros teatrais a partir da natureza dos obstáculos que se apresentam ao caminhar das vontades dos heróis dramáticos. (PALLOTINI, 1983, p. 29)
[10] Sônia Lopes assim descreve a reprodução das medusas da Classe Scyphozoa : “A alternância de gerações é o padrão comum de reprodução, como exemplificado a seguir, com base no ciclo de vida da espécie Aurelia aurita .A medusa que produz espermatozóides libera-os na água. Esses espermatozóides penetram na medusa ‘fêmea’, fecundando o óvulo. O ovo formado é liberado e forma uma larva livre-natante, a plânula. Esta fixa-se a um substrato, dando origem a um pequeno pólipo, que sofre um tipo de reprodução assexuada denominada estrobilação. Da estrobilação são formadas larvas natantes, que produzirão as medusas adultas. Neste ciclo de vida existe, portanto, uma forma polipóide reduzida, na qual ocorre reprodução assexuada, e uma forma medusóide desenvolvida, que tem reprodução sexuada.” (LOPES, 1992, p.195)

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