Segundo ato - Cena 2 - Prazer e morte, a imersão onírica nas Sete Lagoas; ou Who is com cellos?

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[...]Águas-vivas não estão entre as criaturas mais populares. As pessoas as temem devido à dor intensa que pode ser causada ao se encostarem-se a um de seus tentáculos pendentes ou nematocistos, órgãos de que se utilizam para imobilizar a presa [...]. No entanto nem todas as águas-vivas são venenosas. Mastídeas e cassiopéias não precisam de células urticantes porque são vegetarianas. Elas se alimentam das algas que crescem nos seus próprios corpos. Estas espécies são mais abundantes nos misterioso lagos de Palau, conectados ao mar por passagens subterrâneas.

A água aqui é barrenta, porque o lago está cheio de matéria orgânica - folhas mortas, resíduos da floresta, e algas. Primeiramente algumas águas-vivas me chamam a atenção, logo depois algumas dúzias, então literalmente centenas, todas à minha volta. Todas silenciosamente pulsando formam como que um pequeno cosmo secreto. As águas-vivas seguem o sol ao longo do lago, tentando obter os raios solares para fotossintetizar suas hortas de algas. De noite muitas vão para o fundo do lago, uma zona fantasmagórica desprovida de oxigênio onde árvores mortas parecem suspensas numa densa neblina química. É a zona de matéria em decomposição, uma camada de barro ancestral. Aqui no fundo as águas-vivas viram-se de cabeça para baixo, essencialmente fertilizando estas hortas. É uma cena muito estranha, desconcertante, como algo de um filme de terror gótico: milhares de águas-vivas de costas, um tapete ondulante de criaturas pulsando em uníssono. [...]

O sol controla os ritmos do lago. Como que devido a um sinal secreto previamente combinado, todas as águas-vivas do lago começam a subir em direção à luz. [...] Então eu me viro para ver acima, ver o sol dançando no meio de um firmamento reluzente de águas-vivas, a floresta somente um borrão verde e líquido, emoldurando a cena. (COUSTEAU, TraduçãoJosé Marcos Chaves Ribeiro. Disponível em: http://www.nationalgeographic.com/. Acesso em: 07 dec. 1998.)

O início do derradeiro ato desta nossa encenação de quatro contos de Terceiras Estórias decorre no interior de um vagão de trem. O foco se dirige para um banco onde sentado se encontra um homem ainda moço, “Macilento, tez palhiça” (ROSA, 1979, p. 115)[1], vestido com simplicidade, bebendo apática e vagarosamente[2].
A imagem é acompanhada por uma voz[3] que convida os espectadores a compor o que vai ser encenado. O narrador argumenta vogarem inexatidões sobre o desfecho do conto e afirma que só o amor em linhas gerais, e seu milhão de significados, “infunde simpatia e sentido à história” (p. 115). Ele sugere assim o suplemento que brota das carnes do pensamento[4] de cada um na platéia, visando instaurar um movimento de significação como única possibilidade de se realizar uma comunicação, não do que “é”, mas daquilo que se constrói encenando, acrescentando “cópia de informação” (p. 115)[5].
O homem do trem é X. Ruysconcellos, ex-artista do Circo Carré onde era conhecido como o clown “Ritripas” ou “Dá-o-Galo”.
O Carré fora desativado meses ou ano antes da narrada viagem em decorrência do óbito de seu empresário e dono T.N. Ruysconcellos. Parte de seu material e do corpo artístico foi incorporado ao Hânsio-Europeu dos Mazzagrani.
O destino da viagem do protagonista X. Ruysconcellos é Sete-Lagoas. O objetivo é obter informações sobre Ona Pomona, sua desejada outrora colega de picadeiro, através de Mema Verguedo, amiga e companheira de trabalho daquela por ocasião do convívio no circo Carré.
Mema abandonara a vida circense para se fazer mulher da vida. Ona, como se vem a saber, mas ainda não era do conhecimento de Ruysconcellos, seguira com o circo Europeu e casara-se.
O conflito dramático se instaura com a colisão entre a vontade de X. Ruysconcellos e a peremptória recusa de Mema em recebê-lo. Ela resiste à conversação “com receio ou por ira no peito” (p. 115), amuada por ele nunca ter se aproximado dela, fosse para aventura ou namoro.
Persistente, Ruysconcellos espera aguardando milagres.
A entrada em cena de um terceiro personagem muda essa atada configuração, funcionando como um Deus ex machina. Trata-se do secretário do Circo Américas. Ele chega de São Paulo empenhado em contratar Ritripas. A negativa deste ao convite, comprometido que estava em não arredar pé de Sete-Lagoas até obter o paradeiro de Ona, leva o secretário a interceder junto a Mema para que ela receba Ruysconcellos. O funcionário do Circo Américas promete à meretriz, em contrapartida, reengajá-la na cena circense.
Mema Verguedo acaba por se sensibilizar com o apelo de Ritripas. Concorda em com ele se encontrar, não mais apenas na restritiva condição que anteriormente impusera: a de freguês de seus serviços, “como os outros!... pelo passatempo,” (p. 116) sem indagação particular. Neste momento ela se dispõe à totalidade, “-·... para o que quiser.” (p. 118).
O conto termina com o arrombamento da porta do quarto da meretriz, trazendo à luz e às manchetes de jornais a cena então presenciada: sobre a cama os dois: corpos mortos nus entrelaçados.
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A leitura das entre-imagens
Alguns detalhes necessariamente omitidos em uma síntese serão recuperados e colocados em primeiro plano. Acontece que esse conto apresenta, para além das palavras, um pensamento imagético que se desprende, sobretudo dos nomes dos personagens - nomes que se transfiguram ao longo dos acontecimentos -, bem como da descrição de suas atitudes e expressões faciais.
Segundo Freud, em “O ego e o id” (FREUD, 1976, v. XIX, p. 34), também pensamos visualmente. Processos inconscientes de pensamento podem se tornar conscientes a partir da reversão de seu tema geral concreto em resíduos visuais. O raciocínio imagético não expõe, contudo, as relações entre os diversos elementos do tema geral, processo semelhante ao que ocorre com os conectivos nos pensamentos oníricos.
Aliás, a configuração do que surge das imagens desgarradas dos nomes e atributos dos personagens, se a deixarmos fluir, é onírica. Passo a apresentar um resumo da teoria freudiana sobre a formação e a estrutura dos sonhos, tendo em vista que a compreensão dos mecanismos oníricos facilita o percurso nesta outra lógica que se instaura no “Palhaço da boca verde”.
Segundo Freud[6] os sonhos são artifícios para evitar que remanescentes de uma trama de pensamentos não concluída durante o dia, interrompam o sono. A condição para qualquer resíduo virar sonho é que seja capaz de despertar um desejo reprimido, porém atuante no inconsciente. Contudo, o sonho só vinga se, além disso, burlar a censura que, dominante na vigília, não se apresenta totalmente suspensa enquanto dormimos. Os processos de condensação e deslocamento buscam resolver essa tarefa.
A condensação refere-se ao método que congrega a representação de vários pensamentos oníricos em alguns elementos a eles comuns, que passam assim a sintetizá-los, estratégia que camufla tais pensamentos, concentra energia em algumas imagens e facilita sua penetração no conteúdo manifesto dos sonhos. Assim, “um elemento no sonho corresponde a um ponto nodal ou a uma junção nos pensamentos oníricos, e, comparativamente a estes últimos, deve ser descrito geralmente como ‘superdeterminado’.” (FREUD, 1976, v. VI, p. 155). O conteúdo latente do sonho se manifesta como um “roteiro pictográfico [enigma de figuras, um rébus[7]]” (FREUD, 1976, v. IV p. 296) cujos caracteres são legíveis a partir de seus valores simbólicos.
O deslocamento consiste na reversão de importância dos elementos constitutivos dos pensamentos oníricos, de tal forma que as coisas “de menor importância, passam a ocupar uma posição central, aparecendo com grande sensibilidade sensória no sonho manifesto, e vice-versa.” (FREUD, 1976, v. VI p. 155). O pensamento onírico latente, revisto e plasmado em sonho no inconsciente, chega à consciência através de uma regressão em direção à percepção, tornando-se uma representação alucinatória.
Busco entrar nessa outra estória imagética vislumbrada no “Palhaço da boca verde” seguindo o conselho de Freud quanto ao procedimento que deve ser adotado quando se quer interpretar sonhos. Tal procedimento

consiste em abandonar todas as representações-meta que normalmente dirigem nossas reflexões, focalizar a atenção num único elemento do sonho e, então, tomar nota de todos os pensamentos involuntários que possam ocorrer-nos a propósito dele. Tomamos então a parte seguinte do sonho e repetimos o processo com ela. Deixamo-nos impelir por nossos pensamentos, qualquer que seja a direção em que nos conduzam, e assim vagamos a esmo de uma coisa a outra. Mas nutrimosa firme crença de que, no final, sem qualquer intervenção ativa de nossa parte, chegaremos aos pensamentos oníricos de que se originou o sonho (FREUD, 1976, v. XIX, p. 483)
Voltemos ao “Palhaço da boca verde”. Preparem-se para um certo caos neste “vagar a esmo” de uma a outra coisa. Sigo recomendações de Freud.
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Detalhes que não cabem em resenhas, mas fazem a diferença
A trajetória de Ruysconcellos para a morte, sua estória sendo a do parto de um moribundo[8], repete na diferença o fim de Hetério.
É como se o conto focalizasse e imprimisse em câmera lenta o momento em que o protagonista de “Azo de almirante”, ferido, se deixa levar pela correnteza, dentro da canoa, até sua morte no limiar do “brejo da beira” (p. 26). Óbito antecedido por dois eventos.
Primeiramente pelo arrombamento da barca-couraça-protetora de Hetério - instrumento de toda a ficção que ele constrói ao longo dos anos de sua vida-navegação - e, a seguir, pelo desgoverno da barca no fluxo enfurecido das águas a partir da mudança de ritmo instaurada pelo Travessão do Fervor. Desgoverno que Hetério favorece emborcando o corpo da canoa, o que contribui para o seu retorno ao inorgânico, sua mistura com a água, com as pedras, com as espumas, até se atolar na fronteira do pântano, esse lugar entre o fluxo e a terra batida.
Separo alguns fios entrelaçados de pensamentos latentes na aventura inconsciente de Ruysconcellos para viabilizar um mergulho, ainda que parcial nesse mundo onírico e ao mesmo tempo estória de Ritripas, nome que indica a ambivalência entre o de dentro e o de fora, através de sua encenação profissional como palhaço. Atuação cômica que faz rir as platéias exteriores, mas também a si das próprias tripas - suas entranhas, seus desconhecidos, seu estado moribundo.
Num primeiro atalho percorro mais de perto o enredo da estória. Ressalto tanto a viagem de Ruysconcellos, que se desdobra em duas, como a cadência de sua morte anunciada. Adiante acompanho Mema, com o objetivo de explicitar elementos fundamentais a uma interpretação das imagens e movimentos latentes que pulsam na “lógica” onírica no conto.
Vejamos a dupla viagem de Ritripas.
Uma transcorre em direção a Sete-Lagoas, mais especificamente até Mema, suposta etapa promissora de um percurso mais distante até Ona. A outra se direciona para o campo do psíquico, abrindo nova picada na estória.
Essa outra, porém a mesma viagem transcorre a partir de uma reversão de sentido. Ela modifica a orientação da primeira, antenada no mundo externo e comandada pelo princípio de realidade voltado para o adiamento da morte. O novo percurso é governado pelo inconsciente, pelos desejos, pelas pulsões.
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A morte anunciada de Ruysconcellos
Comecemos pelo nascimento do moribundo Ruysconcellos, ou sua morte anunciada ao longo da estória.
O primeiro parágrafo do conto mostra nosso protagonista no trem. No segundo ele é apresentado como oriundo do Circo Carré, desfeito com o óbito de um quase seu homônimo, o empresário e dono T. N. Ruysconcellos.
T. N. remete a TNT: trinitrotolueno, uma “substância cristalina, amarela, poderoso explosivo” [9] (FERREIRA, 1986, p. 1716), como se uma Nota do Tradutor apontasse o estado final de colapso que ameaça Ruysconcellos, como se a morte do homônimo já fosse sua própria morte apresentada em um duplo, ou, pelo menos, a indicação do estado desagregador que se instaura quando a organização circense se desarticula.
Por sua vez, a palavra francesa “Carré” [10], nome do extinto circo, significa o conjunto das costelas de um carneiro, porco, etc., sendo habitualmente adotado na culinária para identificar essa porção corporal de um animal abatido, morto. Tendo em vista as analogias existentes nos outros três contos entre circunstâncias de seus enredos e estórias bíblicas, podemos aventar, ainda que deixando em suspenso para posterior verificação, duas possibilidades de desdobramento do nome do circo onde trabalhava Dá-o-Galo. Carré, costela, aproxima-nos da costela de Adão, de onde se originou a mulher e a reprodução da vida humana anunciando a possibilidade da realização de cópias. O outro paralelo diz respeito ao ritual de imolação ovelhas em oferenda a Jeová comum nos tempos bíblicos.
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Continuando.
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Ruysconcellos é descrito como “distinguindo-se ainda moço, tão bem vestido quanto comedido, nem alegre nem triste, apenas o oposto; bebia, devagar, sem se inebriar.” (p. 115) Nesse trecho da narração ele se assemelha tanto ao apático Jó Joaquim anterior ao aparecimento de Vilíria[11] como a Hetério antes de sua vida ser inundada e fecundada pela grande enchente[12]. Como eles Ruysconcellos vivia em um estado de baixa energia, reforçado pelo uso recorrente ao álcool. Este seu hábito, citado com reincidência no conto, favorecia o movimento energético descendente levando-o “De vez em nada” (p. 116). Observando no Aurélio o significado da expressão “de vez”, podemos traduzir “De vez em nada” como: X. Ruysconcellos caminhava “de maneira decisiva, terminante [...] No tempo adequado de ser colhido” [13] (FERREIRA, 1986, p.1772) ao Nirvana nada, ele, Ritripas, que nem mais retinha os gestos de sua profissão de palhaço[14], a possibilidade de propagar suas invenções ficcionais.
O uso da bebida não o retirava de seu “senso de seriedade e urgência”, digo eu, da vontade de morte, pois como ele próprio afirma “- Só o moribundo é onipotente -” (p. 117). Urgência sendo um termo utilizado por Freud para indicar a força pulsional demandando satisfação. Além disso, sua condenação em direção à morte é fato de que tem ciência e que busca aceitar:

Ruysconcellos não ia durar. - Toda hora há moribundos nascendo... - quase se desculpava, inculcava-se firmeza. - Se bons e maus acabam do coração ou de câncer, concluo em mim as duas causas... - [...] Macilento, tez palhiça, cortada a fala de ofegos, mostrava indiferença ao escárnio, a dos condenados. (p. 115)
Comparando a estória de Ruysconcellos com as de Jó Joaquim e de Hetério observamos uma marcada diferença que contudo estabelece um paralelo entre elas. Nos casos dos protagonistas de “Desenredo” e de “Azo de almirante”, situações referenciadas em eventos bíblicos atravessaram suas vidas e os tiraram de estágios de letargia, de inapetência, possível atalho para a morte via vazão da totalidade da energia psíquica. Assim foi com o nascimento da Eva e Vênus Vilíria aos olhos de Jó Joaquim, e com o evento do dilúvio para Hetério.
O fenômeno que instaura uma mudança no rumo da vida de Dá-o-Galo é a desestruturação do Circo Carré. Ela desfaz o picadeiro onde Ritripas em dupla mão se relacionava tanto com a platéia, fazendo-a rir, como consigo próprio, que ria de suas tripas. No espaço do picadeiro conviviam vida e ficção, dentro e fora. A desmobilização do Carré também remove Ona que, como veremos, propiciava a Ruysconcellos outra ficção.
Diferentemente do que acontece com seus dois colegas protagonistas, o de “Desenredo” e o de “Azo de almirante”, o evento que atravessa a existência de Ruysconcellos reverte seu fluxo energético no sentido oposto ao do transcorrido com Jó Joaquim e Hetério. Como o afamado clown do Carré ele agia afirmativamente ocupando seus espaços cênicos, não dividindo picadeiro, camarim nem platéia, só notando a multidão[15]. Gostava da aclamação e ainda tinha por perto Ona.
A derrocada do circo desencadeia o nascimento de Ruysconcellos como moribundo. É como se correspondesse à entrada do calendário previsto para o sacro ofício da imolação de uma ovelha, ou de Dá-o-Galo.
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A dupla e mesma viagem de Ruysconcellos
A leitura da estória do caminho para a morte de Ritripas seguirá até o fim desta análise. Passemos agora à sua viagem a Sete-Lagoas, em duplo trem: o que o transporta até aquela cidade e o da paciente espera pelo milagre de ser recebido por Mema[16]. Busco aqui inserir detalhes não contemplados na síntese, como o corpo, os procedimentos, o gestual e as expressões faciais do palhaço e da prostituta Mema.
As particularidades do comportamento do palhaço delimitam a porta de entrada para sua viagem no território do inconsciente, abrindo espaço para configurações oníricas. A observação imagética de Mema é também peça fundamental para mergulharmos no pensamento visual latente do texto.
Comecemos por Ruysconcellos. Agrupo suas atitudes para em seguida analisá-las.
Ao explicitar sua ciência sobre o parto de seu ser como moribundo ele coça “a raiz do nariz, isto é, o hilo dos óculos.” (p. 115), gesto que continua quatro parágrafos depois, enquanto no trem da paciência[17] aguardava algum milagre que lhe abrisse uma audiência com Mema. Nessa situação ele

lia, relia à-toa jornais, sem saltar palavras ou página. - Já vi um homem se afundar e desaparecer dentro de um par de sapatos... - tirou os óculos e se acariciava os olhos com as pontas dos dedos. Tinha de Ona Pomona um retrato, queria entender o avesso do passado entre ambos, estudadamente, metia-se nessa música, imagem rendada; o que a música diz é a impossibilidade de haver mundo, coisas. - Inútil... a lucidez - está-se sempre no caso da tartaruga e Aquiles. (p. 116)
Após o que ele dobra “com distraído cuidado a foto - onde Mema via-se também -” (p. 116), rasga-a e destrói a parte que retratava Ona. Ao se dar conta do engano

Fez careta involuntária: a mais densa blasfêmia. Estava sem óculos; não refabulava. Era o homem - o ser ridente e ridículo - sendo o absurdo o espelho em que a imagem da gente se destrói. Disse: - Só o moribundo é onipotente -; a disfarça, Xênio Ruysconcellos [...] De pé, implorava, falando em aparte.
Tartamudo: - ... nona ... nopoma ... nema... - e rir é sempre uma humildade.” (117)
Ruysconcellos “coça a raiz do nariz, [...] o hilo dos óculos” (p. 115), retira estes e acaricia os olhos com as pontas dos dedos. Sua interferência nesses dois órgãos sensoriais se dá no sentido de estimular a raiz, o que está abaixo, o hilo - a “depressão no local onde penetram, num órgão, seus vasos e nervos. [...] Área, na superfície da semente, onde se prende o funículo[...] (FERREIRA, 1986, p. 896), o “cordão umbilical, [...] pequeno cordão ou filamento que une a semente (e o óvulo) à placenta” (FERREIRA, 1986, p. 822).
Além de massagear o órgão olfativo e o da visão, associados no ponto do hilo que os une, ele retira os óculos e fecha os olhos ao coçá-los. Com essa atitude ele recolhe do mundo externo estas duas antenas. E mais, estimula o que está abaixo delas.
Se lembrarmos que o ego é, segundo Freud, uma modificação ocorrida no id através da relação com o mundo externo propiciada pelo aparelho perceptivo, a massagem na raiz, no hilo, estimula o id, o inconsciente, as pulsões, situados abaixo do ego e seiva dele.
Esses seus gestos com os dedos ocorrem enquanto lia “à-toa” jornais no trem da paciência, ou seja, lia impensadamente[18], afastando a razão e a consciência. Tal estado de irreflexão é sucedido pela afirmação surrealista que indica a entrada em uma outra organização do pensamento: “- Já vi um homem se afundar e desaparecer dentro de um par de sapatos... -”, ou seja, dentro daquilo que lhe protege os pés e o situa no chão. De acordo com o Aurélio, ter os pés no chão significa “ser objetivo e realista” (FERREIRA, 1986, p. 1288); acrescento eu: ser conduzido pelo princípio de realidade. O homem se afunda assim no interior do próprio princípio de realidade, quando possui a consciência do seu estado de moribundo, do tempo de sua morte. A derrocada mais uma vez surge como arrombamento e imersão nas águas, como aventa o uso do verbo “afundar”.
A partir daí Ruysconcellos se propõe percorrer a memória em busca do avesso, do oculto no passado entre ele e Ona Pomona.
O movimento de rememoração é descrito como uma imagem rendada, portanto com furos e volteios, como uma música que nega a existência do mundo, das coisas, da lucidez, pois que o espaçamento entre o que está fora do sujeito e o suplemento que gera a significação desse exterior passa a ser um movimento sem encontro, como no caso da tartaruga e de Aquiles. E é nesse estágio do descompasso que rasga com “distraído cuidado” a representação fotográfica de Ona, permitindo-se ver o outro lado da foto, em que aparece Mema.
Dando conta de seu minucioso erro não mais suplementa, não mais “refabula”, e passa a se ver como “o ser ridente e ridículo” (117) no absurdo espelho que destrói sua imagem, seu mito[19].
Nesse espelho o reflexo traz à tona a duplicação de seu ser conforme indicada por Freud em “O ‘estranho’”. Citando Otto Rank, diz Freud que o ego narcísico primário da mente infantil e do homem primitivo se duplica para se sentir seguro e indestrutível, evitando tomar ciência de sua fragilidade e inevitável derrocada. A produção da noção de alma imortal provavelmente indica a primeira réplica do corpo realizada pelo lânguido ser humano. Superada a fase narcísica o duplo reprimido ao retornar inverte seu aspecto e passa a ser um familiar e estranho anunciador da morte.
Os comportamentos de Ritripas acima descritos indicam a abertura de uma via para a não-lucidez, para o inconsciente. Detenhamo-nos no umbral dessa passagem antes de entrarmos no território onde a energia livre produz um pensamento por imagens em transformação portadoras de vários e simultâneos temas.
Observemos agora Mema, tanto seu comportamento como alguns detalhes relacionados a ela, omitidos na síntese do conto, porém fundamentais para o desenrolar do pensamento visual latente do texto.
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Assistindo a Mema
Enquanto atriz do Circo Carré, Mema era “a amiga” (p. 116) de Ona Pomona. Com a desagregação daquele estabelecimento Mema assume a vida de meretriz enquanto Ona se casa e prossegue na cena circense, trabalhando para o Hânsio-Europeu, estando no México ou na Itália, enfim, remota no mundo, no Circo de Mazzagrani.
Na atuação como prostituta Mema mantém seu nome civil e o espanholado sobrenome Verguedo, contrariando o costume da classe de adotar uma alcunha. Ele era magra, alta, angulosa, morena fosca (“trigueira”) e de ar sombrio. Expressava nas mãos uma profunda mágoa e solidão[20]. Aparentava tísica. Seus sombrios ares intimidavam os homens, mas, simultaneamente, instigavam-nos ao retorno a ela, a Mema, quando pressentiam a ambígua emanação de seu corpo, sua secreção venenosa e perfumada,[21] poção de morte e cheiro de vida. Ela era a imagem que lhes permitia a cadência do retorno do recalcado, da morte e vida. Ela encarnava essa indecidibilidade.
Ressentida por Ruysconcellos nunca a ter observado e procurado, seja para namoro ou aventura, Mema desatendia os persistentes recados do palhaço, que lhe solicitava uma audiência. Dizia que apenas o atenderia se fosse para prestar seus serviços como puta, não se dispondo para “indagações particulares”.
Sua reação, contudo, é marcada por ambigüidades e reticências. Vejamos como contracena com os apelos de Ritripas, como é dúbia sua manifestação no corpo, nas atitudes e na fala.
Focalizemos seu quarto.
Nele encontramos Mema trajando um simples vestido rosa-chá. Ela anda de um lado para o outro fumando apressadamente. Possivelmente febril e em jejum, de repente balbucia: “- Se bem, bem, logo, logo...” (116) e, contrariando sua “extraordinária certeza” acrescenta: “- Cuquito! - por carinho ou desdém. ” (116)
Ressentida por nunca ter despertado o interesse de Ritripas, expressa seu desprezo ameaçador com uma careta nervosa. Retrai o rosto acentuando os ângulos de sua superfície, curva para baixo a boca[22], retesa as narinas, afilando-as e tornando o nariz mais incisivo. Simultaneamente dirige o rosto para cima tornando inquisidor o queixo. Afirma: “- Ele nunca teve graça, o que divertia era o seu excesso de lógica... -” (116), e tosse por nojo.
Para ela o amor de Ruysconcellos por Ona Pomona era fruto da imaginação dele[23]. Um engano, um mero acesso de loucura (“veneta”, p. 116), uma influência que ele próprio exercia sobre si mesmo (“influição”, p. 116). Segundo Mema, Ritripas não amava Ona Pomona. Esta foi a conclusão a que chegou a partir de uma encenação, “como se da vida alguma verdade só se pudesse apreender através de representada personagem.” (p. 117), ou seja, encenando e suplementando.
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Quem ou o que Mema encena?
Agucemos nossos olhares em outra cena do rosto de Mema: ele estava abrasado, suas ventas fremiam, buscando apreender alguma verdade[24]. Mema dizia para si e consigo mesmo (“entredisse”, p. 117), “- Ele não quer ser ele mesmo... -”
Ventas[25] remete ao faro aguçado em busca da caça. Ventas fremindo[26] - estremecendo em contrações espasmódicas de júbilo ou raiva - reforçam a sensação de uma atitude irracional, selvagem, fora de controle, de indecidibilidade se lermos de “júbilo e raiva”. “Apreender”, por sua vez, refere-se à busca por compreender e assimilar a verdade, mas também ao golpe do caçador que farejando pega, segura, agarra e prende a caça[27].
Se associarmos a essas manifestações faciais de Mema a descrição de seu corpo - “rapariga alongada e mate, com artes elásticas, de contornos secos recortados” (p. 116) -, teremos aí forte sugestão de um animal preparando e dando um bote, alongando-se com artes elásticas e dando o xeque-mate na caça farejada que vira presa de Mema, dela cuja “maior escuridão estava nas mãos.” (p. 117)
Outra narração de sua pessoa enquanto aguardava Ruysconcellos - “Simples, escorrida se estreitava no rosa-chá vestido” (p. 117) - acentua o movimento preparatório do bote: o de se agachar (“escorrida”) e se contrair (“estreitava”), ela que devia de não comer e ter febre, estava faminta e com “desejo ardente; ânsia de possuir, de alcançar alguma coisa.” [28] (FERREIRA, 1986, p. 764)
Já o atributo conciso “rosa-chá” de seu vestido retoma tanto seu ar sombrio, anteriormente indicado como se localizando entre as dobras de uma rosa, como também remete a chá-mate e assim reafirma a rapariga alongada e mate, a que instaura o xeque-mate. Continuando a frase temos a afirmação de que “o amarelo é difícil e agudo” (p. 117). Relembremos a associação desta cor com o T.N.T., explosão prestes a arrombar a vida, o agudo amarelo como um estilete que dilacera.
Guardemos a cena. Retornaremos a ela.
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A mala roubada: a genética do espetáculo resguardada
Retenhamos também que Mema ocultava uma mala com os artifícios protéticos de “Dá-o-Galo”: “narizes de papelão postiços ou reviradas pontas de cera, tintas para a cara, sapatanchas, careca-crescente, amplas bufonas coloridas.” (117) Guardava consigo a herança genética da ficção circense de Ritripas, do espetáculo, da encenação que, no contexto trabalhado aqui se refere aos artifícios de adiamento da morte.
Observemos de Freud o que diz a respeito das células germinais protegidas pelas pulsões eróticas.
Em “Além do princípio de prazer” ele fala que essas células possivelmente retêm a estrutura original da matéria viva e podem, após algum tempo, se separar do todo do organismo e se desenvolver repetindo o desempenho a que devem a sua existência. Elas alongam a estrada para a morte. Sua função, porém, somente é reforçada ou viabilizada quando uma delas se funde “com outra célula similar a si mesma e, contudo, diferente dela.” (FREUD, 1976, v. XVIII p. 58) O movimento da vida orgânica, segundo Freud, acontece em um ritmo vacilante orquestrado pelas pulsões. Ora as de morte precipitam-se para seu derradeiro objetivo até determinada etapa, quando as pulsões eróticas tomam a dianteira e buscam resistir às influências externas ameaçadoras procurando preservar a vida por um período mais longo.
Mema, protetora da herança genética da atitude circense de Ruysconcellos com seus sombrios, sendo a um só tempo veneno e perfume, indica essa oscilação. Além disso, cobra de Ruysconcellos que seja ele mesmo[29], similar a si própria, Mema.
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A reversão da resistência de Mema: abre-se o quarto, palco para corpos nus
Ao saber da negativa de Ruysconcellos à proposta profissional do Circo Américas, Mema praguejou com gentileza: “- Cuspes de dromedário! -” e recebe uma pitada de morte indicada pelo “pó da palidez” que lhe cobre e pelo entorno dos lábios que se esverdeiam.[30]

“Mema mordida escutou o enviado apelo [do representante do Circo Américas], apagada a acentuação do rosto. - Ele precisa de dinheiro, de ajuda? - e seu pensamento virava e mexia, feito uma carne que se assa. - Que venha ... - de repente chorou, fundo, como se feliz - ... para o que quiser. Ela estava ali com muita verdade, cheirava a naftalina ou alfazema. O vento acaba sempre depois de alguma coisa que não se sabe.” (p. 117-118)
Furiosa, embriagada e acometida de moléstia venérea[31], Mema, ao escutar o recado do apelo de Ruysconcellos, desfaz a tensão facial. Seu pensamento girando mergulha na profundidade de sua carne, fazendo brotar seu estilo no sentido barthiano do termo.
No primeiro capítulo de O Grau zero da escritura, Barthes distingue língua de estilo, procurando definir o que seja “escritura”.
A língua, diz ele, é um “corpo de prescrições e de hábitos, comum a todos os escritores de uma época” (BARTHES, 1971, p. 20-21), uma natureza que atravessa a fala e delimita a área de atuação do escritor. Segundo Barthes, o escritor ao mesmo tempo em que precisa utilizá-la necessita romper com a língua, que se encontra situada abaixo da literatura.
Já o estilo, segundo esse pensador

está quase além [da Literatura]: imagens, um fluxo verbal, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e tornam-se pouco a pouco os próprios automatismos de sua arte. Assim, sob o nome de estilo, forma-se uma linguagem autárquica que só mergulha na mitologia pessoal do autor, nessa hipofísica da fala, onde se forma o primeiro par das palavras e das coisas, onde se instalam de uma vez por todas os grandes temas verbais de sua existência. Seja qual for seu refinamento, o estilo tem sempre algo de bruto: é uma forma sem destinação, o produto de um impulso, não de uma intenção, é como que uma dimensão vertical e solitária do pensamento. Suas referências estão no nível de uma biologia ou de um passado, não de uma História: ele é a “coisa” do escritor, seu esplendor e sua prisão, sua solidão. [...]. É a parte privada do ritual; eleva-se a partir das profundezas míticas do escritor e expande-se fora de sua responsabilidade. É a voz decorativa de uma carne desconhecida e secreta; funciona à maneira de uma Necessidade, como se, nessa espécie de explosão floral, o estilo fôsse apenas o termo de uma metamorfose cega e obstinada, brotada de uma infralinguagem que se elabora no limite da carne e do mundo. [...] (BARTHES, 1971, p. 20-21)

Temos assim duas portas e uma mala abertas: a entrada de Ruysconcellos para o inconsciente, a porta do quarto de Mema que expõe sua carne, seu estilo, e a valise de “Dá-o-Galo”.
Chegou a hora de ultrapassarmos esses umbrais, de entrarmos no onírico meio aquático do conto.
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O azul em que as coisas se perdem e perduram; ou
Who is com cellos?
Assistimos aos gestos de Ruysconcellos e aos de Mema.
Falta-nos abrir os nomes dos personagens e trazer à cena a referência a Ona como “similar à água e à seda? Do azul em que as coisas se perdem e perduram?” (p. 117), ambiente que remete ao não tempo do inconsciente onde nossa mitologia pessoal mergulha, como diz Barthes sobre o estilo.
Dos nomes dos três principais personagens desprende-se uma série de imagens.
Da sonoridade do nome do protagonista - X. Ruysconcellos - surge um enigma matemático que ao mesmo tempo rompe com a lógica do conto, podendo ser equacionado como: “O X. da questão é: Who is com cellos?” [32]. Transcrevendo essa frase que se apresenta no duplo idioma inglês e português, para esse último temos: “O ‘X’ da questão é: quem é que possui cel(o)-?”
“Cel(o)” é elemento de composição de origem grega significando “oco”, “cavidade”, e se encontra na formação da palavra celenterado, utilizada como exemplo no Aurélio[33].
Vejo nesse enigma duas direções a percorrer a partir do sema “cel(o)”. Uma considerando seu significado de origem grega “oco” ou “cavidade”. A outra levando em conta o celenterado, esse animal provido (“-ado”)[34] de intestino [“enter(o)-“][35] oco [“cel(o)”].
Investigarei cada uma dessas duas imagens afloradas do nome de Ritripas[36] para verificar se elas condensam um pensamento onírico, buscando observar se essas figuras reverberam em outras e tecem a pele da carne dos personagens, a de seus estilos, uma linguagem inconsciente.
Começarei pela segunda, a figura dos celenterados.
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A dupla vida da Obelia
O termo “celenterado” indica a presença de uma cavidade digestiva com uma única abertura, a boca (celenteron), sem a existência do ânus, uma característica comum aos filos Cnidaria e Ctenophora.
Tendo sido os cnidários e os ctenóforos os primeiros animais a apresentarem um corpo com estômago, “celenterados” passou a denominar coletivamente esses dois filos. Fiquemos com os cnidários.
Outra característica distintiva dos cnidários é a presença de cnidócitos que são células especiais providas de nematocistos, ou seja, de cápsulas com veneno e filamento.
Ao ser tocado ou estimulado quimicamente o cnidócito lança para fora o nematocisto, que projeta um longo filamento, pegajoso ou espiculado, através do qual é eliminado o veneno urticante de sua cápsula. As células cnidócitas são utilizados tanto para caça como para a defesa dos cnidários contra predadores. Os filamentos laçam, arpoam e/ou paralisam pequenos bichos, podendo ser letal a um animal do porte do ser humano.
Os cnidócitos ocorrem ao longo da epiderme do animal, porém concentram-se nos tentáculos que formam um círculo ao redor de sua boca e que envolvem e retêm a presa envenenada.
O Filo Cnidaria divide-se em três classes: Hydrozoa, cuja forma dominante é o pólipo, Scyphozoa, onde predomina a forma medusóide e Anthozoa, que abarca as anêmonas-do-mar e os corais. Fiquemos com a primeira, afinal é a única do trio que possui representantes que vivem em água doce, pois é na água doce de Sete-Lagoas que se encontra Ruysconcellos.
Na classe Hydrozoa dois tipos morfológicos de indivíduos do Filo Cnidaria- as medusas natantes e os pólipos sésseis - podem ocorrer de modo alternado durante o ciclo de vida de algumas espécies, como no caso da Obelia, exemplo que nos servirá de fio para continuarmos acompanhando a imagem liberada do nome de Ruysconcellos.
O ciclo de vida da Obelia reveza, portanto, estas duas fases que se alternam em gerações de pólipos e de medusas. A fase polipóide é colonial, isto é, de um pólipo inicial brotam novos pólipos que permanecem unidos entre si.
Sua forma se assemelha à de uma planta. A reprodução nessa etapa é assexuada e por brotamento, dando origem a dois tipos de pólipos: os gastrozoóides responsáveis pela nutrição da colônia, e os gonozoóides relacionados com a reprodução.
Dos gonozoóides brotam pequenas medusas com sexos separados e que são liberadas na água. Elas se reproduzem de forma sexuada. O óvulo fecundado pelo espermatozóide desenvolve “um embrião que dá origem a uma larva livre-natante denominada plânula. Essa larva se fixa a um substrato e sofre metamorfose, dando origem a um pólipo. Este, por brotamento, forma a colônia, reiniciando o ciclo.” (LOPES, 1992, p. 194)
Esse longo parênteses me foi necessário para inserir a dupla vida de Obelia, semelhante a planta e sendo medusa, também chamada água-viva, chora-vinagre, mãe-d’água, mãe-joana, mija-vinagre, ponom, urtiga-do-mar, vinagreira, conforme o Aurélio[37].
Agora continuemos a observar os nomes ainda não investigados: o de Ona Pomona e o de Mema Verguedo.
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O nome Ona Pomona
Seu nome é desdobrável. Ele guarda dentro de si dois mitos: um bíblico - o de Onã -, e outro romano - o de Anaxárete, que se desdobra da lenda de Pomona. Vamos por partes.
Ona Pomona é uma estrutura nominativa que possui um invólucro, uma casca protetora, um par de parênteses formado por “Ona” encobrindo e protegendo “Pomon”, anagrama de “ponom”, sinônimo de água-viva, portanto um celenterado. Aliás, Ona Pomona é dita como similar à água e à seda.
O termo Ona por sua vez remete a Onã, o personagem bíblico censurado por sua atitude de interromper o coito para jogar fora o sêmen, evitando fecundar a parceira. O nome que deu origem a “onanismo”: “Automasturbação manual masculina; quiromania” (FERREIRA, 1986, p.1223).
Pomo - o miolo do vocábulo composto protegido pelo onanismo - significa fruto. Pomona, por sua vez, é o nome de uma ninfa romana que amava os jardins e o cultivo das árvores frutíferas[38], atividades a que se entregava com paixão e que para ela substituía o amor, pois desejava permanecer virgem. Essa ninfa foi, entretanto, seduzida por Vertuno, que, sob a forma de uma velha, contou-lhe a lenda da nobre Anaxárete, castigada por sua renitente recusa ao amor do apaixonado Ífis, levando-o à desesperança e ao suicídio por enforcamento. O castigo de Anaxárete sucedeu-se ao colocar os olhos “no vulto de Ífis estendido no caixão” (BULFINCH, 1999, p. 98), ato que a petrificou, transformando-a em estátua.
A trágica estória de Anaxárete demoveu Pomona de sua resistência ao amor, levando-a a se entregar a Vertuno.
O mito de Anaxárete, que Ona Pomona desencadeia no conto “Palhaço da boca verde”, remete à atitude de Mema em relação a Ruysconcellos, à negativa dela em receber Ritripas “para indagações em particular” (p. 116). A comunicação entre essas duas personagens continuará a se desdobrar, mas para tanto precisamos entrar e percorrer o nome de Mema Verguedo.
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Mema Verguedo
Comecemos pelo antenome, o neologismo Mema, formado pelos pronomes “me” e “ma”, este último repetindo o “me”, que se apresenta contraído ao “a”. Mema se volta duplamente ao “eu”.
O “eu” reincidente encontra-se também no nome do circo que incorporou parte dos equipamentos e dos artistas do Circo Carré - inclusive Ona Pomona: o Hânsio-Europeu.
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Um parêntese: o Circo Hânsio-Europeu
Vejamos por parte esse nome composto. Hânsio, neologismo, remete a “ansa”, “hansa” e a primeira pessoa do singular do verbo “ansiar”.
“Ansa” significa asa, pequena enseada mais ou menos abrigada e oportunidade ou ensejo[39]. “Hansa” refere-se à associação “que existia em várias cidades do Norte da Europa, na Idade Média, para efeitos comerciais.” (FERREIRA, 1986, p. 882) “Ansiar”, por sua vez, expressa causar ansiedade a; oprimir; angustiar; desejar com veemência, ardentemente; ter ânsias; respirar com dificuldade; angustiar-se.[40]
Agrupando as idéias suscitadas pelos vocábulos contidos no Circo Hânsio-Europeu é possível dizer que esse nome encerra um nódulo de significações. Ele constituiu uma “oportunidade” para os atores do Carré continuarem exercendo a profissão circense, uma “enseada mais ou menos abrigada”. Aliás o nome de família dos donos deste circo é Mazzagrani, sonoridade que podemos traduzir para o português como mas há grana, nessa associação para efeitos comerciais.
E assim bateu “asa” Ona Pomona, tornando-se remota em relação a Ruysconcellos, causando-lhe ansiedades, suscitando-lhe ardente desejo, angustiando-o e encaminhando-o para a morte representada na respiração dificultada contida no verbo “ansiar” e que lhe aparece na fala cortada de ofegos[41]. Anseia a si mesmo Ruysconcellos.
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Retornando a Mema
Mema sugere sonoramente “mesma”.
Quando a observarmos vimos que ela instigava o retorno a si mesma dos fregueses que pressentiam a ambígua emanação de seu corpo, sua secreção venenosa e perfumada, poção de morte e cheiro de vida.
Ao perscrutar o nome Ona Pomona, verificamos que ele traz ao texto o mito de Anaxárete, que por sua vez remete à atitude de Mema de não querer receber Ruysconcellos. Ona Pomona, assim, permite um encontro figurativo com Mema. O mito de Anaxárete insere porosidade em seu contorno e permite certo acoplamento de Mema a sua imagem.
Guardemos essas semelhanças e continuemos a desdobrar “Mema Verguedo”.
Comecemos pela maneira como Ruysconcellos relaciona o nome “Ona” com o de “Mema” ao perceber que da fotografia retratando as duas amigas rasgara a parte que continha a imagem de Ona Pomona e não a de Mema, conforme intencionava:

Estava sem óculos, não refabulava. Era o homem [...] Disse: - Só o moribundo é onipotente -·; a disfarça, Xênio Ruysconcellos, o álcool não
lhe tirava o senso de seriedade e urgência. De pé, implorava, falando em aparte.

Tartamudo: - ... nona ... nopoma ... nema ... (p. 117)
No final da cadeia associativa entre as duas personagens, no lugar de “Mema” encontramos “nema”, isto é, “’fio’, ‘antena’, ‘tentáculo’” (FERREIRA, 1986, p. 1187), o que nos remete a “nematocisto”, a célula característica do Filo Cnidária. A aproximação de Mema às águas-vivas é reforçada pela forma como ela é pressentida: como “um vinagre perfumoso” (p. 116), vinagre sendo também sinônimo de água-viva.
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Novo parêntese: a irrupção de Xênio, “o homem”
Prestemos também atenção à atitude de Ruysconcellos: “De pé, implorava, falando em aparte.” (p. 117)
“Aparte” significa no sentido teatral do termo: “Comentário crítico ou esclarecedor, dirigido aos espectadores por um ou mais personagens, no decorrer da ação da peça [...]” (FERREIRA, 1986, p. 138)
A cadeia estabelecida entre Ona e Mema é declarada solenemente por um Ruysconcellos. Ele se coloca de pé e de forma séria e urgente fala-nos em aparte, acentuando assim uma informação preciosa para decifrarmos o enigma de seu nome.
Esse ponto alto da peça inclui ainda uma importante informação e uma transformação desencadeante de significados.
A partir desse momento desfaz-se o “X.” de Ruysconcellos, essa preposição equivalente a “em oposição a, contra, versus [...]” (FERREIRA, 1986, p. 1795). Desfaz-se seu escudo e ele se transforma em Xênio - “o homem” moribundo, todo-poderoso e potente (“onipotente” p. 117). Vejamos parcialmente os verbetes “xênia” e “xênio”.

xênia. [...] Na Grécia antiga, a qualidade de estrangeiro [...]
xênio. [...] Na Grécia antiga, presente que se dava aos hóspedes, após as refeições, ou aos amigos em certas épocas do ano; xênia.
Retenhamos a cena, e voltemos a Mema.
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O retorno ao território Verguedo de Mema
Verguedo é um neologismo composto pelo vocábulo “verga” acrescentado do sufixo “-edo”. “Verga” significa vara flexível, ripa e em linguagem chula, segundo o Aurélio, nomeia o pênis[42]. Também indica o sulco produzido pelo arado no ananho da terra.
Por sua vez o sufixo “-edo” indica “‘plantação’, ‘lugar onde crescem vegetais’; ‘noção coletiva’; ‘objeto de grande vulto’ [...]”. (FERREIRA, 1986, p. 619)
A acepção de cultivo da terra inclusa em Verguedo aproxima Mema de Pomona, a ninfa romana preservadora dos pomares. Essa atração sígnica entre as duas amigas apresenta-se também no paralelo que se estabelece entre elas através da insinuação de Ona como fruto, já que pomo inclui-se em Pomona, e de Mema como caroço em: “Mema, a ela não deixava de voltar quem vez a pressentisse, como num caroço de pêssego há sobrados venenos, [...]” (p. 116)
Porém, o sobrenome Verguedo pode também ser traduzido como um pênis [“verga”] de grande vulto [“-edo”]; ou o lugar onde se planta [“-edo”] a verga, o pênis, onde ele cresce, se torna potente. Verguedo encerra a ambivalência de ao mesmo temo indicar pênis e o local que o recebe.
Essa duplicidade nos faz lembrar o texto de Freud “A Cabeça da Medusa” (FREUD, 1976, p. 289-290).[43] Nele o pensador interpreta as possíveis reações de espectadores da horripilante imagem da cabeça decapitada da Medusa (FREUD, 1986, p. 189).
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A cabeça decepada da Medusa
Segundo Freud, a cabeça da Medusa alude à genitália feminina adulta e ao pênis. Ele interpreta o terror que sua imagem causa no espectador como decorrência tanto da conexão que esse estabelece entre decapitar e castrar, como pela imagem que a representação iconográfica da cabeça da Medusa aflora da genitália feminina adulta. O temor da castração nos meninos, conforme Freud, habitualmente é instaurado ou reforçado na ocasião em que presenciam o órgão genital materno rodeado de cabelos, quando lhe chama à atenção a inexistência do pênis, o que os leva a imaginar que tenha sido decepado.
Em direção inversa, a freqüente reprodução em obras de arte dos cabelos da Medusa como cobras mitiga o horror da castração, tendo em vista que a proliferação do fálico signo da serpente substitui a ausência do pênis.
A lenda de que a visão da cabeça da Medusa enrijece de terror seu espectador, petrificando-o[44], também indica uma reversão de afeto, pois, segundo Freud, ficar rígido significa uma ereção, o que mais uma vez consola o espectador “que se acha de posse de um pênis e o enrijecimento tranqüiliza-o quanto ao fato.” (FREUD, 1976, v. p. 289)
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Quem possui o oco?
A indecidibilidade entre o pênis e o oco receptor nos faz voltar a um caminho apontado como possível de nos levar a desvendar o enigma “Who is com cellos?”, e que deixamos para percorrer agora. Trata-se de investigar a partir do significado de cel(o)- como um elemento de composição de origem grega significando “oco”, “cavidade”[45].
Nessa direção significante poderíamos traduzir o enigma por “Quem possui o oco?”
Voltemos à obscura frase a respeito de Mema: “Estava ali com extraordinária certeza; dela de alguma maneira, contudo se intimidavam os homens, era o seu ar dos sombrios entre as dobras de uma rosa.” (p. 116)
Seu ar sombrio localizava-se entre as pregas (“dobras”)[46] de um ânus (“rosa”)[47]. No último parágrafo do conto, onde se relata a cena encontrada no quarto arrombado de Mema, ela é descrita como não estando “travestida ou empoada”. No habitual, travestia-se Mema? Seria ela um homem travestido? Rosa retoma aqui o avesso da questão do amor de Riobaldo pelo suposto homem jagunço Diadorim em Grande Sertão: Veredas.
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Interligando imagens afloradas: a onírica “lógica” do prazer e da morte
Destacamos da estória do “Palhaço da boca verde” uma série de elementos, colocando-os em primeiro plano: as lendas, significados e imagens guardadas nos nomes dos circos e dos personagens, em suas atitudes, fisionomias e humores, bem como na mala de Ruysconcellos escondida por Mema. Buscamos focalizar a atenção em cada elemento do conto e permitimo-nos navegar a esmo de uma a outra indicação imagética que se nos apresentaram, conforme sugestão de Freud em “A psicologia dos processos oníricos”. (FREUD, 1976, v. XIX, p. 468-489)
Com esses procedimentos revertemos um deslocamento inscrito na trama do conto. Passo a verificar se as imagens, lendas e significados aflorados e colocados em primeiro plano condensam pensamentos dentro de uma “lógica” onírica.
Em relação aos personagens, observamos que suas silhuetas são porosas e possibilitam a circulação de cada um através do corpo descrito do outro.
Permito-me agora navegar como leitora, a partir dos achados no texto, aceitando a sugestão do narrador no primeiro parágrafo do “Palhaço da boca verde”: “Só o amor em linhas gerais infunde simpatia e sentido à história, sobre cujo fim vogam inexatidões, convindo se componham [...]” [Grifos nossos] (p. 115)
Passo à coreógrafa das imagens que desprendidas das palavras e frases metamorfoseiam-se numa dança onírica. Passo a sonhar com Xênio.
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O sonho de Xênio
Começo pelo ciclo de Obelia de Ruysconcellos.
A imagem da lona de um circo assemelha-se à forma abobadada de uma medusa, sobretudo a Peladia colorata da classe Scyphozoa, uma água-viva branca com listas vermelhas. Ambos, circo e vinagreira, deslocam-se produzindo seus espetáculos.
O encerramento do Circo Carré coincide com a derrocada de Ruysconcellos, que se vê e se sabe moribundo.
A etapa de vida circense de Ruysconcellos, período em que reproduz o espetáculo em picadeiro, corresponde à etapa de pólipo de Obelia[48], quando seus indivíduos vivem em colônia cuja aparência se assemelha à de uma planta, e a reprodução ocorre por brotamento, de forma assexuada.
Quem remete à vida circense a esta fase do ciclo de Obelia é Ona Pomona. Seu nome carrega dois atributos que podem ser relacionados a esse período.
Um está inscrito no nome “Pomona”, que traz ao texto a imagem vegetal.
O outro atributo deriva de Ona, que conduz a Onã e em seqüência a onanismo, essa forma solitária de realização sexual, que estabelece um paralelo com a reprodução assexuada do ciclo polipóide da Obelia.
O movimento de locomoção dos pólipos, do tipo “mede-palmos” ou “cambalhotas”, é outra imagem que remete à atividade circense por se assemelhar aos malabarismos.
No tempo de encenação como Ritripas, Ruysconcellos criava seus “détours” exibindo-se, encenando em picadeiro para uma platéia que o consagrava e, agindo como Prudencinhano, o guia de cego de “Antiperipléia”, também construía sua ficção na prática sexual. Onanista, influía-se com a imagem de água e seda de Ona Pomona[49]. Nesse período Dá-o-Galo[50] adiava a morte masturbando-se, e seguia a vida reproduzindo o espetáculo.
Solapada a organização colonial do circo Carré, Ruysconcellos transforma-se em uma água-viva natante e se vê solto em Sete-Lagoas. Resistindo dentro de suas esburacadas memórias da fase onanista[51], sai em busca de Pomona, mas depara-se com Mema. Vê-se como “o homem”, Xênio, o outro e estrangeiro, separando-se do mesmo, de Mema. Nesse momento desfaz-se o “X”, seu escudo, deixando-o desprotegido diante da Medusa, água-viva e mito, que remete ao mesmo tempo ao pênis e à genitália feminina adulta, indicados no ambíguo território nomeado Verguedo.
Recordemos o mito da morte da Medusa.
Segundo ele Perseu, filho de Júpiter e Dânae, enfrentou esse monstro equipado com um escudo fornecido por Atena e calçando sandálias aladas presenteadas por Mercúrio. Enquanto a Medusa dormia, Perseu dirigiu-se até ela guiando-se através da imagem do monstro refletida em seu brilhante escudo. Aproximou-se e cortou a cabeça da medusa, preservando-se de cruzar seu olhar com o dela, evento que o petrificaria.
Diferindo de Perseu, Ruysconcellos aproxima-se de Verguedo desprovido de seu escudo, no momento em que se assume como “o homem”, o outro, estrangeiro, como um presente a ser entregue após a refeição.
Rememoremos agora a expressão facial e os movimentos de Mema, para tentarmos responder à pergunta então formulada e deixada em suspenso sobre o que encenava Verguedo: com o rosto abrasado, as ventas fremindo, agacha-se, contrai-se, alonga-se com artes elásticas e dá o bote na caça farejada, que vira presa da faminta e febril Mema, “de contornos secos recortados” (p. 116) e cuja “maior escuridão estava nas mãos.” (p. 117)
Se vincularmos essa performance à mutação da imagem do circo em água-viva, e da água-viva em cabeça da medusa, podemos incluir uma metamorfose a mais na cadeia de figuras abauladas onde primeiramente surgem tentáculos, que se transformam em cabelos de serpentes, e que agora viram pernas de “contornos secos recortados”, e podemos supor Mema encenando uma aranha.
Considerando o desfecho da estória, esta aranha é uma viúva-negra, aracnídeo cuja fêmea após a cópula geralmente come o macho, seu presente após a refeição (“xênio”). Mas ao mesmo tempo mantém o poder da Medusa de enrijecer, de causar ereção, tornando o moribundo Ruysconcellos onipotente, homem e xênio, e também o do filamento que dispara do nematocisto situado em tentáculo da água-viva para inocular veneno na presa. Afinal, o espectro de morte que se vai apossando do rosto de Mema, que se vê tomado do “pó de palidez, esverdeando-se por volta dos lábios”, tinge do verde letal a boca de Ruysconcellos, representada no título do conto.
E a dança de Eros nos corpos de Ruysconcellos e Mema abre caminho para a morte em seu tempo. Nua, natural, satisfeita a morte de Ruysconcellos, de “doença de Deus” (p. 118), seguida pela de Mema, que se suicida[52].
No arrombamento do quarto reabre-se a mala genética do palhaço Ritripas, preservada por Mema. Ressurge então na diferença o espetáculo do espaço picadeiro do palco da cama. Em cena, os dois corpos nus jazendo abraçados, imorais, à luz fechada. E o espetáculo propala-se em falsidades, exageros e inexatidões.
[1] A partir desta citação todas as demais referentes ao conto aqui tratado serão apresentadas apenas com o número da página entre parênteses.
[2] Confira: “Distinguia-se ainda moço, tão bem vestido como comedido, nem alegre nem triste, apenas o oposto; bebia devagar sem se inebriar.” (p. 115), como o Jó Joaquim antes do evento de Vilíria, ou o Hetério no período antecedente ao dilúvio.
[3] Confira primeiro parágrafo: “Só o amor em linhas gerais infunde simpatia e sentido à história, sobre cujo fim vogam inexatidões, convido se componham; o amor e seu milhão de significados.” (p. 115)
[4] Paráfrase de “e seu pensamento virava e mexia, feito carne que se assa.” (p. 117), momento em que Mema sensibiliza-se com o apelo de Ruysconcellos, para com ela conversar. Trabalharei essa frase com mais vagar adiante, quando ao lado dela será posta a noção barthiana de “estilo”, esta “voz decorativa de uma carne desconhecida e secreta [...] (BARTHES, 1971, p. 21)
[5] Expressão utilizada no conto para indicar as razões que levaram o protagonista a procurar Mema Verguedo, ou seja, obter notícias de Ona Pomona.
[6] “A Relação dos chistes com os sonhos e o inconsciente” (FREUD, 1976, v. VI)
[7] “rébus. [Do fr. rébus] S.m.2 n. O ideograma no estágio em que deixa de significar diretamente o objeto que representa para indicar o fonograma correspondente ao nome desse objeto.” (FERREIRA, 1986, p. 1459).“fonograma.[De fon(o)- + -grama] S.m. 1. Sinal gráfico que representa um som. [...]” (FERREIRA, 1986, p. 797).
[8] Confira a afirmação feita pelo protagonista sobre a ciência de que estava condenado à morte, real ou figurada: “- Toda hora há moribundos nascendo...- ” (p. 115), afirmação marcada pela indecidibilidade vida e morte.
[9] O amarelo é uma cor que permeia vários contos de Terceiras estórias, dando uma coloração simbólica a situações. Interessante seria acompanhar esses pigmentos que criam manchas em Tutaméia. Aqui apenas esta nota para firmar a hipótese de que o amarelo citado em vários contos possa estar relacionado ao teor explosivo de TNT.
[10] Confira a origem do vocábulo “carrê” indicada no Aurélio como sendo proveniente da palavra francesa “carré”, “o conjunto das costelas de carneiro, porco, etc.” (FERREIRA, 1986, p. 358)
[11] Confira em “Desenredo”: “Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre”. (p. 38)
[12] Conferir em “Azo de Almirante”: “Fora homem de família, merecedor de silêncio, só no fastio de viver, sem hálito nem bafo.” (p. 24)
[13] A expressão “de vez” encontra-se no verbete “vez” no Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 1777).
[14] Confira “De vez em nada, tragava gole. Do alvaiadado Ritripas nem lhe restassem mínimos gestos.” (p. 116)
[15] Conferir fala de Mema sobre Ruysconcellos: “- Sei, nunca me viu... palhaços só notassem a multidão, não dividiam picadeiro, camarim, platéia.” (p. 116)
[16] Conferir “Entrado ao trem da paciência.” (p. 116)
[17] Confira: “Entrado no trem da paciência” (p. 116)
[18] Conferir verbete “à-toa” em FERREIRA, 1986, p. 195.
[19] Essa situação do espelho que nos destrói a imagem nos remete a uma nota de rodapé no texto freudiano “O ‘estranho’” (FREUD, 1976, v. XVIII p. 309). Nela o autor relata uma sua experiência de estranhamento ao se ver inesperadamente no espelho enquanto viajava de trem, supondo tratar-se de outra pessoa cuja aparência causou-lhe antipatia.
[20] Conferir no Aurélio a quarta acepção do termo “escuridão”: Em termos figurativos o vocábulo significa “Mágoa profunda; tristeza, solidão.” (FERREIRA, 1986, p.693), eis a frase onde aparece essa palavra: “Sua maior escuridão estava nas mãos.” (p. 117)
[21] Refiro-me à frase: “Mema, a ela não deixava de voltar quem vez a pressentisse, como num caroço de pêssego há sobrados venenos, como a um vinagre perfumoso.” (p. 117)
[22] Confira “Sorria contrária - toda em ângulos a superfície do rosto - o nariz afirmativo, o queixo interrogador.” (p. 116)
[23] Confira: “O que ele imaginava, de amor a Ona Pomona, seria no mero engano, influição, veneta. Sob outra forma: não amava.” (p. 116-117)
[24] Confira: “Mema entredisse, em enfogo, frementes ventas - como se da vida alguma verdade só se pudesse apreender através de representada personagem.” (p. 117)
[25] Confira verbete “ventas”: “Cinegética. [Arte da caça] Olfato, faro.” (FERREIRA, 1986, p. 1763)
[26] Confira verbete “fremir”: “[...] Tremer, estremecer, ter contrações espasmódicas [...] Figurativo Agitar-se ou estremecer de júbilo ou raiva.” (FERREIRA, 1986, p. 811)
[27] Confira verbete “apreender”: “Segurar, pegar, agarrar, prender” (FERREIRA, 1986, p. 147)
[28] Conforme verbete “febre” no Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 764).
[29] Quando Mema avalia o amor de Ruysconcellos por Ona como fruto da imaginação dele próprio, afirma: “- Ele não quer ser ele mesmo...” (p. 117)
[30] Confira “Deu-lhe o pó da palidez, esverdeava-se por volta dos lábios.” (p. 117)
[31] Confira o verbete “mordido” no Aurélio: “[...] Embriagado [...] Zangado, raivoso, furioso [...] acometido de moléstia venérea.” (FERREIRA, 1986, p. 1159)
[32] Maria Antonieta Pereira em “Boca Verde - cena e silêncio”, comunicação apresentada no Seminário Internacional Guimarães Rosa, afirma que o “X” de Ruysconcellos remete ao símbolo usado para marcar a incógnita nas operações matemáticas.” (DUARTE, 2000, p. 407) Gabriela Frota Reinaldo em “A mitopoética na canção de Siruiz, de Grande Sertão: Veredas” indica o uso de enigmas por Rosa ao comparar a canção de Siruiz com o Oráculo de Delfos, presente em Édipo Rei, de Sófocles. (Confira DUARTE, 2000, p. 259)
[33] Confira FERREIRA, 1986, p. 379.
[34] Confira FERREIRA, 1976, p. 48.
[35] Confira FERREIRA, 1986, p.662.
[36] A alcunha Ritripas inclusive reapresenta cel(o) na medida em que se trata de um neologismo que agrupa a terceira pessoa do singular do verbo rir à palavra “tripas”, indicando um sarcasmo frente às tripas, ao intestino.
[37] Conferir o verbete “água-viva” em FERREIRA, 1896, p. 68.
[38] Associação já realizada por Vera Novis. (Confira NOVIS, 1989, p.96)
[39] Conferir o verbete “ansa” no Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 127)
[40] Conferir o verbete “ansiar” no Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 127)
[41] Conferir: “Macilento, tez palhiça, cortada a fala de ofegos [...]” (p. 115)
[42] Conferir o verbete “verga” no Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 1766)
[43] A medusa é atraída também ao texto por ser um termo sinônimo de água-viva.
[44] Tema reincidente na estória de Anaxárete petrificando-se ao ver o féretro de Ífis passar diante de sua casa.
[45] Confira o verbete do prefixo “scel(o)-” (FERREIRA, 1986, p. 379).
[46] Conferir verbete “dobra” no Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 604)
[47] Conferir verbete “rosa” no Aurélio: “Brasileiro, MG. Chulo O ânus” (FERREIRA, 1986, p. 1522)
[48] Embora a imagem do circo remeta à fase medusóide, sobretudo à da água-viva caravela que é uma colônia flutuante.
[49] Baseio-me na conclusão de Mema sobre a relação de Ruysconcellos com Ona Pomona: “O que ele imaginava, de amor a Ona Pomona, seria mero engano, influição, veneta” (p. 116)
[50] Vale lembrar que, segundo o Aurélio, “Ser um galo” significa “Ter (o homem) orgasmo rapidíssimo.” (FERREIRA, 1986, p. 831)
[51] Referência à imagem rendada de sua memória, aludida quando ao rasgar o retrato de Ona Pomona busca entender o avesso do passado entre ambos. (116)
[52] Confira: “[...] atesta-se porém que ele satisfeito sucumbiu, natural, da doença de Deus. Mema após, decerto, por sua própria vontade.” [Grifos nossos] (p. 118)

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