Primeiro ato - Cena 2 - A química da paciência de Jó em louvor ao prazer


[...] a natureza humana e suas vicissitudes
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[...] a nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino, e o feminino, mas também havia mais um terceiro, comum a esses dois, ao masculino e ao feminino, [...]. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderiam supor. [...] Eram [...] de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. Zeus então, e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que deviam fazer com eles, [...]. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. [...] eu os cortarei a cada um em dois [...].” [...] Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a
ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e outra ficava, a que ficava procurava outra metade do todo que era mulher [...] quer com a de homem; e assim iam se destruindo. (PLATÃO, 1972, p. 28)
Este ato se abre tendo como cenário o interior de um botequim em um pacato vilarejo interiorano. A entrada de uma mulher casada, com traços remanescentes de uma beleza juvenil[1] aflora a pulsão erótica de um habitual freguês, Zé ninguém com bafo de cerveja.
O enredo dramático se instaura com a afirmação por Jó Joaquim dessa paixão que o impele a assumir a odisséia de obter e manter os amores da “dissimulada, aparentemente inofensiva” [2], “insistente” e vulgar[3] mulher cobiçada. Ela passa a ser o alvo, a “viva mosca” para onde se dirige sua pulsão erótica em busca de satisfação. Para tanto vê-se obrigado a se esgueirar por entre perigosas ameaças: o ciúme violento do marido, o controle dos mesquinhos habitantes da vila - a “terra de injustiças” - e a sedução fatal da insidiosa amante, cujos poderes levaram à morte dois homens que com ela se envolveram.
O desenredar do título refere-se ao périplo ao contrário comandado por Jó em um abismo navegável[4], portanto com um manancial de água persistente. O cenário diverge daquele de “Antiperipléia”, onde a torrente do fluxo erótico do libidinoso Tomé abriu um fecho e escoou, deixando seco o leito que rompeu, expondo o abismo fatal.
As peripécias de “Jó a quim” - o Jó com a química[5] do paciente homônimo bíblico - caracterizam-se por serem guiadas por uma estratégia voltada, ao mesmo tempo, para viabilizar a realização de suas pulsões eróticas e para se proteger e/ou evitar a emanação de forças agressivas externas orientadas em sua direção, bem como internas pressionando para escoarem livremente, descontroladamente, podendo gerar atitudes imprudentes, colocando-o em risco. Trata-se de um comportamento comparável ao de Eros, modificado pelo princípio de realidade. É como se as experiências do cego Tomé volvessem em um precipitado em seu ego que adota a prudência do guia sem, contudo diminuir o fluxo caudal de Eros e suas exigências, pois o princípio de realidade “não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer.” (FREUD, 1976, v. XVIII p. 21)
As condições de navegação de Jó oferecem perigos que o podem matar, seja por atração para uma voragem ou por colisão de energias externas sobre seu corpo.
No primeiro caso o risco advém dos etéreos fluidos emanados por Vilíria. Percebidos pelos órgãos sensoriais de Jó, eles são capazes de atraí-lo para o sorvedouro de uma paixão cega, no sentido de desconsiderar a bússola do princípio de realidade e liberar sem controle sua urgência erótica em direção a Vilíria, repetindo o erro de Tomé, em “Antiperipléia”, que não acatava as descrições de seu guia. Além de serem citadas em “Desenredo”, estas emanações apresentam-se através de uma sonoridade disseminada na materialidade do texto.
A segunda ameaça provém do bruto marido assassino de outro amante de Vilíria, e da “alheia vigilância” (ROSA, 1986, p. 38) [6] dos moradores da vila, que podem tornar público o envolvimento de Jó Joaquim com Rivília, expondo-o como alvo para as agressões do esposo de sua concubina.
Além desses riscos fatais, é preciso desfazer-se do empecilho que o controle da população coloca entre ele e a amásia. Para tanto, apropria-se irreverentemente da tradição religiosa e filosófica ocidental, revertendo sua direção de maneira a contornar ou desfazer os obstáculos construídos pela moral nela pautada, que dificultam seu estar com a Vilíria e, conseqüentemente, a vazão de sua energia sexual. A antiperipléia de Joaquim no metafórico precipício com uma superfície virtual realiza-se em barco de papel, matéria que remete ao recurso do discurso ficcional, o mesmo artifício utilizado por Prudencinhano em “Antiperipléia”. O abismo, por sua vez, ao mesmo tempo nos faz pensar no abissal da língua e da cultura, como também na fenda feminina. Reforça essa segunda remissão a combinação omitida a partir das sílabas constituintes dos anagramas que nomeiam a mulher (Livíria, Rivília, Irvília e Vilíria), a palavra latina “Virília”, de onde se originou virilha.[7]
Segue um resumo da estória e a apresentação das metáforas utilizadas para caracterizar Jó e Vilíria. Adiante será exposta a substância do discurso, elemento que se torna personagem, como em “Antiperipléia”, quando Prudencinhano lança mão da oratória para se desvencilhar da suspeita de ser o assassino de seu patrão, o cego Tomé. Em “Desenredo”, o discurso é voltado para permitir que o corpo desejoso de Joaquim satisfaça suas pulsões eróticas em segurança.
Jó, quieto e desconhecido morador de uma aldeia, freqüentava assiduamente bares, e bafejava cerveja. “Tinha o para não ser célebre” (p. 38), até que certo dia se encantou por uma bonita mulher, casada, com quem viveu a plenitude do amor em três distintas situações, transformando-se em foco de atenção de seus conterrâneos.
Na primeira situação Jó estabelece uma relação extraconjugal com Rivília. Tal condição perdura até ele ser surpreendido pela existência de outro amante, assassinado pelo marido. Ao descobrir-se traído por um terceiro, Joaquim se recolhe e sofre, até que a circunstância da morte do marido lhe permite assumir legalmente seu posto.
Na condição de esposo, Joaquim vive seu segundo interlúdio amoroso com a amada, situação interrompida por sua atitude de expulsar a mulher ao flagrá-la novamente infiel.
As saudades de Rivília durante o estágio de separação dão voz ao seu desejo de “felicidade - idéia inata”, e levam Jó Joaquim a desfazer o enredo de traição, presente na memória dos moradores da vila. Minuciosamente, ele constrói outra estória, reabilita o conceito da mulher frente à população do vilarejo, a si e a ela própria, que volta à vila, e os dois novamente, pela terceira vez, vivem juntos.
As metáforas utilizadas para indicar Joaquim descrevem as reações de seu corpo ao longo do enredo, sobretudo as eróticas e seu comportamento precavido, marcado pelo espaçamento como estratégia de economia da morte e viabilização do prazer guiado pelo princípio de realidade. Ele é descrito como embarcações: nau, barquinho de papel, mastro, barca. Já as imagens relacionadas à Vilíria são etéreas - vela e vento, ar, aroma, fofos de bandeira ao vento -, expressam emanações que dela provenientes atingem e excitam Jó. Algumas indicam os dois copulando. Vejamos como se apresentam nas três circunstâncias do envolvimento do casal. Em separado serão relacionadas as atitudes de Jó voltadas para a economia da morte.
Os furtivos encontros na qualidade de amantes burlando o controle da vila são descritos como um abismo “navegável a barquinhos de papel” (p. 38). Já a relação amorosa entre eles, nessas ocasiões leva-os a voar “o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento” (p. 38), onde o corpo de Jó indicado por nau é arrebatado (“ímpeto”) e tangido a vela e vento, por Rivília. Assim, ambos surgem através de uma mesma imagem em movimento. O uso do verbo “tanger” indica a musicalidade estimulante de Vilíria que faz com que Jó abra e não mais feche seus ouvidos às conversas encantatórias [8] de Vilíria.
Ao terminar esse período de bons ventos, com a entrada no cenário de outro amante, ele se desmastreia[9], perde sua potência.
Após expulsar Vilíria, quando casado a flagra novamente traindo, volta a viver quieto e respeitado “no frágio da barca” (p. 39), que podemos ler como frágil + ágio da barca, ou seja, na fragilidade do lucro/lembrança dos tempos de “nau tangida a vela e vento”.
Ao concluir o desenredo, a orientação da vida é reafirmada em função da realização fálica em: “O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima” (p. 40). Na descrição com “dengos e fofos de bandeira ao vento” (p. 41), dos trejeitos coquetes de Vilíria ao retornar, a imagem da bandeira associa a união dos dois: dele a partir do mastro e dela do pano ao vento, junção reforçada no penúltimo parágrafo do conto quando os verbos na terceira pessoa do plural passam para a primeira do singular no pronome “sua”, indicando a vida do protagonista em: “Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.” [grifo nosso] (p. 40)
Essa simbiose textual reforça a unidade perseguida pelo incompleto[10] Jó na relação amorosa. Remete-nos ao mito grego que versa sobre a natureza dos humanos. Segundo essa lenda, anteriormente aos humanos existiam seres compostos por dois do nosso atual padrão. Eles possuíam quatro pernas, o mesmo número de braços e de mãos, dois sexos, um pescoço suportando uma cabeça com dois rostos, quatro orelhas, e assim por diante, até que foram cortados ao meio, no sentido longitudinal, por Zeus, como reprimenda ao investimento que realizaram contra os deuses e com o objetivo de subjugá-los tendo em vista que essa divisão diminuía a força desses seres.
Separados, passamos, segundo a lenda, a procurar nossa anterior completude através do acasalamento, conforme é relatado por Aristófanes, no Banquete de Platão, citado por Freud em “Além do princípio do prazer”. Freud faz uso do mito para indicar o caráter conservador da pulsão erótica. Segundo ele, Eros persegue o estado de tranqüilidade do período anterior ao da animação da substância viva, ou seja, antes de sua divisão “em pequenas partículas, que desde então se esforçaram por reunir-se através dos instintos [pulsões] sexuais” (FREUD, 1976, v. XVIII p. 78). Da sugestão freudiana percebemos a ambivalência vida e morte das pulsões eróticas que, como as pulsões de morte, visam retornar ao estado inorgânico anterior à insurgência da vida, porém, ao mesmo tempo, buscam, através do princípio de realidade, ligar o livre fluxo da energia psíquica, de maneira a, por détours, adiar o objetivo de morte para que o organismo faleça “apenas do seu próprio modo” (FREUD, op. cit., p. 57).
Voltando ao “Desenredo”, a unificação de Vilíria e Jó através de metáforas, de recursos gramaticais e estruturais do conto indica o texto como o corpo de Jó. É a partir do foco de suas sensações internas, de suas percepções, que somos remetidos ao objeto de seu desejo - que ele interiorizando o funde consigo - bem como à realidade externa da vila e do marido, indicados como perigosas energias incidentes sobre o território de seu corpo.
Assim Vilíria nos é apresentada através da percepção visual, auditiva e tátil de Jó. A começar pela irrelevância de seu verdadeiro nome na estória, sendo suas alcunhas anagramáticas indicativas do nascimento do desejo de realização erótica em nosso herói, pois seus primeiros fonemas descrevem as ações de Jó quando a vontade afirmativa de sua pulsão erótica se instaura: Livíria, Rivília e Irvília, o que é confirmado por “Sorriram-se, viram-se” (p. 38), no primeiro contato entre os dois. Além disso, o anagrama omitido “Virília” indica o que nela interessa a Jó, formatando seus “arquétipos”, sua “idéia inata de felicidade” (p. 39)[11]. Aliás, Vilíria, do latim, indica as “‘partes sexuais do homem, dos machos”’, dando origem a “Área de junção da coxa com o ventre’” (FERREIRA, 1986, p. 1782). No contexto do conto, o sugerido anagrama “Virília” serve para nomear as partes pudendas de Irvília e, ao mesmo tempo, as partes sexuais de Jó e a união dos dois.
Rivília pode ser entendida como a imagem externa que deflagra o desejo em Eros de recuperar o estágio primitivo dos seres andróginos. Ela é o vento e a vela a mover o corpo erótico de Jó. Em “O ego e o id” Freud diz que “somente algo que já foi uma percepção Cs. pode tornar-se consciente, e que qualquer coisa proveniente de dentro (à parte os sentimentos) que procure tornar-se consciente deve tentar transformar-se em percepções externas” (FREUD, 1976, v. XIX p. 33). Em “Desenredo” a arkhê aflorada na consciência de Jó sob a forma de Livíria não é a da pulsão de morte, como em “Antiperipléia”, e sim a de vida, guiada pelo princípio de realidade.
Vejamos como Jó percebe a mulher que o encanta.
Vilíria surge como uma sensação visual de Jó: “Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão [...] Sorriram-se, viram-se” (p. 38) Por sua vez, a materialidade do mel e do pão despertam o apetite, apelam para o paladar. Já na frase seguinte, “Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou no amor” (p. 38), temos sua relação tátil com a amada, pois o duplo sentido de “pegou no amor” sugere tanto o apaixonar-se de Jó como também o ato de segurar, de apalpar, reforçado na frase subseqüente indicativa de que a paixão desdobrou-se em encontros amorosos: “Enfim, entenderam-se” (p. 38).
Quando Vilíria reaparece, após enviuvar-se, apresenta-se “sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio” (p. 39). Oferecendo-se a Joaquim (“colher de chá”) ela se dá ao paladar (“grude de engodos”) e vira uma fala recebida pelos ouvidos abertos de Jó [12]. Interessante a escolha da palavra grude. Além de cola significa “ligação íntima entre as pessoas [...]. Comida, refeição [...]. Doce feito de goma seca e coco ralado [...]. Namoro.” (FERREIRA, 1986, p. 870) Ela, mosca insistente, cola e é deglutida, interiorizada por Jó, é o doce em direção ao qual seguem suas saudosas lágrimas após o evento da expulsão, ao ser traído: “Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas” (p. 39).
A marcação do tempo é outro aspecto que faz com que o texto ressoe como a percepção de Jó Joaquim. Durante o desenrolar da estória convivem dois registros temporais: um cronológico, permitindo-nos acompanhar o enredo, e outro amplo, transfigurando-se em eterno na generalização da felicidade como “infinitamente maio” quando Jó “pegou no amor” (p. 38), e “idéia inata” (p. 39), bem como na transformação sucessiva da estória em conto de fadas, lenda e ata. Nessa última forma assume, inclusive, uma conotação de verdade registrada e ratificada pelos que assinam embaixo da ata. “Verdade” é um conceito que traz dentro de si uma noção de intemporalidade, tendo em vista que afirma algo que, por ser verdadeiro, vale para sempre. Segundo Freud, a característica de amplitude indica a presença de “processos mentais inconscientes, [...] ‘intemporais’ [...] não [...] ordenados temporalmente” (FREUD, 1976, v. XVIII, p. 43).
A estratégia do paciente Jó para manter a relação com Vilíria corre em duas direções complementares. Ela tanto promove um afastamento nos momentos de tristeza e de perigo, quando vêm à luz outros amantes, como interfere no imaginário da população local, do próprio Jó e da desejada mulher, no sentido de desfazer imagens que funcionem como barricada entre o casal.
O primeiro estratagema está bem explicitado em “Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude” (p. 38). Sua reação, quando pela primeira vez torna-se público outro amásio de Vilíria, protege-o de perigosas energias provindas tanto do exterior, do violento marido, como de seus “de dentro”, que podiam torná-lo “pseudopersonagem”, isto é, desviá-lo da rota pacientemente guiada pelo princípio de realidade e direcionada para o prazer dependente de seu estar com Vilíria. Evita assim, com a atitude de distanciamento marcada pela economia da morte, reverter o seu objetivo, ao deixar se manifestar alguma reação fora de controle do seu ego, entregando-se às incontroláveis forças desconhecidas do id, desprovido da bússola do princípio de realidade, “em lance de tão vermelha e preta amplitude”, ou seja, em situação passional (“vermelha”) e capaz de ocasionar a morte (“preto”).
Novamente Jó Joaquim gera o espaçamento que esfria a cabeça e evita o surgimento de seu “pseudopersonagem” ao expulsar Vilíria quando, como marido, presencia-a com um amante. A atitude de apostrofar-se adotada na ocasião[13] indica um recolhimento do homem e o uso do discurso/poesia como artifício de economia da morte, como uma sublimação da energia erótica.
A cadência entre o lançar-se para Vilíria e o resguardar-se é orientada pela atitude de ler, presente na seqüência de ações indicadas nas primeiras sílabas do nome da mulher desejada. O princípio de realidade supõe que o sistema psíquico considere o mundo exterior em suas determinações, para isso desenvolve, entre outras, as funções psíquicas da atenção e do pensamento orientado para a ação. Jó lê Vilíria antes de rir e ir (lembremos das ações inscritas nas primeiras sílabas dos anagramas de seu nome: Livíria, Rivília e Irvília). Ele também lê os perigos externos, tanto os decorrentes da fúria do marido de sua amante, como os passíveis de serem desencadeados pelo controle dos moradores da vila. Age, assim, diferentemente do cego Tomé de “Antiperipléia”. O cego apenas se interessava em ler, apalpando, as formas das mulheres com quem se amasiava, porém permitia que fosse observado durante suas relações amorosas, ignorando a perigosa triangularidade que desencadeava e potencializava; com essa atitude deixava-se exposto e desprotegido das circunstâncias externas.
Em outro momento Jó Joaquim age aparentemente em contradição com o ato da leitura. Quando, amante, fica sabendo da existência de outro rival além do marido de sua amásia, ele, “Derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer [...]” (p. 38). Surpreendido pelos fatos que o entristeceram, evita de vê-los (“desistia de crer”). Descrer, para Jó, tanto o preserva do sofrimento como possibilita renovar um futuro envolvimento com a amante e, conseqüentemente, cria uma perspectiva de satisfação pretérita de suas pulsões eróticas. Os aparentemente contraditórios comportamentos de ler e fazer vistas grossas constituem-se em mecanismos de uma mesma economia.
A estratégia de desenredo, destacada no título da estória, promove a inversão dos fatos indicativos de Livíria como uma mulher lasciva e fatal, qualidades que dificultam o reencontro dos dois, seja pelo controle moralista da vila, seja pelos afetos gerados em Jó Joaquim com a visualização da traição de Livíria, ou pelas mágoas causadas na esposa pela extradição que lhe impõe. O protagonista nesse caso é o discurso, como o proferido por Prudencinhano, em “Antiperipléia”. É o corpo desejante de Jó feito texto que intervém nos fatos, direcionado pela vontade anunciada na forma etérea de “felicidade - idéia inata”, indicativa de sua vontade erótica. Nesse corpo textual encontramos também a sedutora voz de Rivília, que o atravessa pela sonoridade. Mais uma vez nos deparamos com o ser mítico descrito por Aristófanes na fatura textual onde entrelaçados os dois corpos “vivem” e se expressam ao mesmo tempo.
A forma como Jó Joaquim se relaciona com a sedução da voz e dos encantos de Vilíria, associada às metáforas que o indicam, de mastro e de embarcação, fazem lembrar uma cena de Ulisses por ocasião de seu retorno a Ítaca. Quando esse herói da guerra de Tróia passa pela região onde habitavam as sereias, ordena que seus marinheiros tampem com cera os ouvidos e solicita que o atem por cordas ao mastro de sua embarcação para que possa ouvir o sedutor canto das sereias sem, contudo, correr o perigo de atirar-se no abismo das profundezas do mar, atraído pela musicalidade desse canto. Com esse procedimento ele se deixa guiar ao mesmo tempo pelo prazer, representado no falo/mastro, e pelo princípio de realidade, indicado tanto na corda que o retém na embarcação, como na que bloqueia aos marinheiros, além da audição do canto das sereias, os apelos de Ulisses para que o desatrele do mastro/pênis, fato que lhe propiciaria precipitar-se no mortal sorvedouro marinho, entregando-se, assim, à pulsão de morte.
Vilíria, representada pelas imagens aéreas de ar, vento e aroma, tangendo nosso herói Jó Joaquim, remete ao alerta que Circe fez a Ulisses acerca das sereias: “Esses pássaros do mar com fisionomia de mulher [...]” (MEURNIER, 1989, p. 285), que atraem os homens com cantos harmoniosos.
Vejamos a melodia no texto e, a seguir, a entrada de Jó Joaquim naquele enredo, comandando seu périplo a partir e ao contrário da produção cultural do ocidente, navegação que funciona como a cera da cena de Ulisses e que bloqueia a audição da população da vila e cala as falas “difamatórias” a respeito de Vilíria.
A escolha de vogais e consoantes, a partir de uma seleção e combinação lapidares de palavras, cria um ritmo e uma fala segunda que, reforçando a materialidade própria do texto, repõe à fala/língua sua ligação direta com o corpo, com seus sons de lamúria, ameaça, dor, prazer. O texto se transforma numa onomatopéia das sensações, das ações e das características dos personagens ou do ambiente, e também antecipa o desenrolar futuro das circunstâncias onde seu protagonista vai agir ou sentir, reforçando com isso o tempo único, alargado dos fatos e o corpo integrado da narração. Vejamos alguns exemplos.
No primeiro parágrafo, quando surge Vilíria, temos: “Chamando-se Livíria, Rivília ou Irvília, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu” (p. 38). Os nove “is” das três combinações do nome de Vilíria concentram-se no meio da frase e são cercados pela predominância da tranqüilidade dos “as” (10 em 23 vogais audíveis das palavras em torno dos anagramas). Os “is” antecipam os perigos a que estão expostos aqueles que se envolvem com a sedutora e dissimulada mulher; os “as”, por sua vez, remetem-nos ao artifício usado por Jó para com ela se relacionar: afastando-se nos momentos de amplitude vermelha e preta.
Na descrição da condição clandestina dos encontros de Joaquim com a amante: “Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas” (p. 38), a maioria das consoantes pronunciadas com sons independentes é surda (15 em 23), sendo que dez são oclusivas, ou seja, encontram um obstáculo total quando são articuladas, reforçando a sensação de segredo e de dificuldade para a realização dos encontros.
Em “Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento” (p. 38), escutamos o vento a partir dos sons sibilantes dos “vês” (3), “g” (1) e “s” (1), em quatorze consoantes que se somam às cinco nasalizações de vogais. Também são audíveis os rufos do vento sonorizadas pelos “dês” (2) e “tês” (3).
Encontramos as minúcias do fricativo e nasal Jó em: “Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente” (p. 38), assim como seus sobressaltos, inerentes à situação de encontros amorosos às escondidas, presentes nos “is” e “os” (7 de cada, num total de 25 vogais).
Em: “Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro...” (p. 38), os “erres” rosnam (6 em 15 consoantes audíveis) e os dois “tês” no final prenunciam o tiro que surge na frase seguinte na dupla sonoridade “tou-a”: “Sem mais cá nem mais lá, mediante revolver assustou-a, matou-o.” (p. 38)
Retornemos agora à estrutura narrativa do texto e à entrada que nele faz Joaquim, focando a cena onde ele desenreda os fatos indicativos de Vilíria como uma mulher lúbrica.
Declarando-se no primeiro parágrafo como narrativa oral, o texto entra por nossos olhos como conto escrito. Apresenta-nos Jó Joaquim após o que relata suas aventuras em seis tempos: quando amante de Vilíria; no período de sofrimento ao saber-se traído por outro amante; na etapa do casamento, anterior à expulsão da mulher; no período de tristeza e saudades de Vilíria; na fase do desenredo e, finalmente, na retomada das núpcias com Rivília.
Não é o narrador da abertura de “Desenredo” que conta a estória. Ele abre caminho para outra voz, subtendida no travessão que inicia o segundo parágrafo, após os dois pontos na frase inicial: “Do narrador aos seus ouvintes:” (p. 38). No término do “Desenredo” o conto volta às mãos do primeiro orador, que retoma a estória relatada pelo outro e a transforma sucessivamente em fábula e ata. Esses dois narradores explícitos assemelham-se a um par de parênteses amparando, protegendo as peripécias de Jó. A proliferação de vozes demarca a ficcionalidade da estória e ao mesmo tempo a vida como ficção, pois formatada em fábula (p. 40) a estória passa a ata, ou seja, é registrada como versão aceita dos fatos por aqueles que deles participaram e que depois assinam embaixo.
Os dois narradores sugerem uma dupla pele envolvendo a estória das vicissitudes pulsionais eróticas de Jó apresentada no miolo do conto, recurso que repete a proteção observada na estrutura textual de “Antiperipléia”.
A dupla mão entre realidade e texto ficcional - indicada pelo movimento da estória que vira fábula e é firmada como ata, bem como pelo discurso que ganha corpo ao encampar os sons provenientes dos personagens - é encenada na atuação de Jó Joaquim ao se inserir na trama do imaginário da população local com vistas a dissipar nuvens, criando condições “meteorológicas” favoráveis à viagem de volta da extraditada Vilíria. Nas malhas dos fatos e da letra ele recorre à tradição ocidental, utilizando-a, porém, de maneira invertida. Joaquim passa a representar dois personagens de nossa cultura, um oriundo da tradição sacra e outro da profana, fundindo-os. O personagem sacro é o Jó bíblico[14], a partir de seu nome e de sua atitude paciente, do seu “amor meditado, à prova de remorsos” (p. 39). O profano é Ulisses, a quem é comparado em sapiência por ter começado “a se fazer de louco” (p. 39), repetindo o procedimento daquele visando a não participar da guerra de Tróia para não correr os riscos de sofrer e morrer no sangrento e longo episódio, e também para não se afastar de sua esposa Penélope, cobiçada por outros homens que a assediaram enquanto Ulisses esteve ausente. No caso de Joaquim, ele se faz de louco para trazer de volta o objeto de seu desejo, para manter-se no perigoso território da paixão sem, contudo expor-se aos perigos de uma navegação sem rumo, é para continuar singrando abismos em barquinhos de papel. Por outro lado, na in-versão bufa da odisséia de Ulisses, não temos uma fiel Penélope aguardando o marido e dissimulando seus pretendentes, tecendo e desfazendo a mortalha de seu sogro. Em “Desenredo”, quem destece e refaz a urdidura da ficção dos fatos é o fricativo, paciente e desejoso Jó, e quem volta é Vilíria, a mulher dada e dissimulada. O que se dissimula com o desfiar e recoser dos fatos é a morte, constantemente adiada ao se desmanchar e novamente fiar a mortalha.
Jó desfaz o “nevoeiro” (p. 40) causado pelas traições de Rivília e que impediam a volta desta à sua Ítaca, a partir da rede[15] de símbolos da cultura ocidental que explica e orienta a vida. Essa rede é referenciada por estórias bíblicas, pela lógica aristotélica e pela lenda de Ulisses.
O percurso de Jó Joaquim pode ser lido como o diálogo entre língua e estilo, no sentido barthiano do termo[16], a se desdobrar em uma escritura que abre veredas no emaranhado da tradição que pulsa na “vigilância alheia da aldeia” e que grita na valentia do marido. O protagonista Jó, consubstanciado em seu estilo, compondo uma escritura vira um ator dramático responsável pelas vicissitudes dos fatos. O promotor das peripécias é o estilo, no sentido barthiano, representante de sua pulsão erótica modificada pelo princípio de realidade. Ele empece, liga a livre e violenta energia oriunda das maledicências populares a partir de uma força de tradução dos fatos que os reverte em uma versão favorável a seus desejos.[17]
O quieto e respeitado Jó Joaquim expõe-se publicamente ao se casar com Vilíria. A partir desse momento passa a ter o povo como público leitor de suas atitudes, que dá a ver. Ao expulsar a mulher quando a flagra traindo, repete o gesto de Deus em relação a Eva, “apostrofando-se como inédito homem e poeta” (p. 39), frente à população que, repartida, aplaude e rejeita. Como em uma A rosa púrpura do Cairo da literatura, entra nas malhas da letra e por “antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escusadas, remendados testemunhos,” (p. 40) produz o desenredo. Sua versão verossimilhante dos fatos vira estória, ilude os leitores seus contemporâneos, faz história. A narrativa, quando passa para as mãos autoras de Jó Joaquim, ganha seu estilo fundado no corpo desejante e vira uma escritura ao se posicionar frente à moral, aos costumes, e à lógica aristotélica, criando uma ficção com os farrapos de fatos concretos. Essa ficção, posta na mesa da vida do conto, vira versão aceita, determina os rumos dos acontecimentos e traz de volta a mulher amada, “nua e pura [...] com dengos e fofos de bandeira ao vento” (p. 40), recebendo como nome Vilíria, Vil e Líria, vil e pura na versão de Jó. E assim termina em happy end de contos de fada a atuação de Jó no texto, após o que volta à cena o narrador.
De forma humorada o desenredo, com final feliz, questiona a estrutura cognitiva ocidental fundamentada em uma lógica que desconsidera os imprevistos, os desejos, as fantasias e a realização erótica.
A relação vida e ficção e a encenação por Jó ao entrar na trama do texto traduzindo-o estão explicitamente indicadas. Cito algumas passagens para então comentá-las:
[...] os tempos se seguem e parafraseiam-se [...] Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. [...] Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-se descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. [...] [grifos nossos] (p. 39-40)
O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escusadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado - Plástico e contraditório rascunho. Criava-se nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?

[...] Sumiram os pontos de reticências, o tempo secou o assunto.” [grifos meus] (p. 40)
Paráfrase, apóstrofo, ponto, rascunho e pontos de reticências indicam a vida como texto. O movimento de tradução dos fatos por Jó apresenta a ambigüidade entre ficção e realidade. Primeiro ela reverte os flagrantes de Irvília com os amantes em lenda, em calúnias que se propõe desfazer, colocando outro enredo na boca-de-cena do mundo. Para tanto remenda testemunhos, molda o contraditório rascunho do passado como se fosse uma matéria plástica, por exemplo barro, de onde tira a possibilidade da vida, fazendo sumir os pontos de reticências e secando a turva água, com a paciência de Jó, o que ouve seu próprio coração quando em desgraça[18], não um coração devocionista, porém fálico, e agindo como Ulisses na reversão dos fatos a partir de uma anti-lógica aristotélica. Vejamos agora a tradição literária ocidental que norteia a inserção da antiperipléia de Jó. Agrupo as passagens, conforme a cena onde estão explicitadas, grifando-as.
O primeiro encontro com Vilíria:

Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. (p. 38)
Ao saber da existência de outro amante:
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando [...]; chegou a maldizer de seus próprios abusufrutos. (p. 38)
Quando morre o marido de Rivília:

Azarado, fugitivo, e como a Providência praz o marido faleceu, afogado ou de tifo. [...] Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. (p. 39)
A atitude adotada por Jó ao presenciar a traição da esposa:
Expulsou-a apenas, apostrofando-se como inédito poeta e homem. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. (p. 39)
Fazendo o desenredo:

Sábio foi Ulisses, que começou a se fazer de louco. [...] Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade - idéia inata. Entregou-se a remir e redimir a mulher, à conta inteira. [...] Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. (p. 39)

Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Platão a fundou. (p. 40)

A volta de Vilíria:
Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento. (p. 40)
Nessas citações encontramos enxertos de e/ou alusões a textos bíblicos, da tradição grega, através da lenda de Ulisses, do sistema de raciocínio lógico ocidental “desde que Aristóteles [o] fundou”, e das referências aos arquétipos platônicos, não no sentido do mundo das idéias, mas na forma concreta do corpo de Vilíria, além da alusão à iconografia renascentista.
A tradição cristã surge referenciada pela estória bíblica de Jó; pela dúbia atitude do Jó Joaquim de assumir-se pecador no mea culpa de maldizer e reafirmar “seus gratos abusufrutos”; pela adoção de um “franciscanato”, divergente da escolha consciente de Francisco de Assis, pois Jó Joaquim hiberna seus desejos, postergando a realização dos mesmos, por causa das circunstâncias externas quando essas lhe são adversas. Jó Joaquim assume um papel de representante religioso quando resolve remir e redimir a devassa Vilíria, ou seja, perdoar seus pecados livrando-a das penas do inferno [19]. Com isso permite sua volta ao paraíso, lugar onde podem, Vilíria e Jó Joaquim, realizar seus desejos eróticos.
A temática bíblica é explicitamente citada, aludindo a três momentos do mito de Adão e Eva: o da criação da mulher, do homem, e o da expulsão daquela do paraíso. Com exceção do primeiro evento, os dois outros surgem invertidos. Vejamos.
O nascimento de Irvília ocorre enquanto Jó dormia, conforme a ficção bíblica. Já a criação dele discorda do relatado no livro do Gênesis. Ele é moldado no barro a partir do surgimento de Vilíria, fato indicado pelo seu avesso, pela volta de Jó Joaquim ao barro ao saber da existência de outro amante. A volta ao barro, o estado inorgânico anterior à vida, é associado ao seu desmastreio, quando perde sua potência erótica. Podemos deduzir que a alma é introduzida em Jó Joaquim com o surgimento de Vilíria, responsável pelo despertar de seu desejo, fato que instiga o fluxo da pulsão sexual transformado pelo princípio do prazer e instaura seu movimento em direção à vida. Temos assim Livíria no lugar de Deus que, tornando-se objeto de desejo, sopra a pulsão erótica no pacato corpo de Jó Joaquim, sua alma.
Na cena da expulsão da Eva do paraíso conjugal, Jó assume o papel de Deus. Não de um Deus que quer punir, mas sim voltado a garantir o controle da situação, não permitindo ser comandado pelos seus “de dentro”, seu id, como “pseudopersonagem” que faz vir à tona nos momentos de “vermelha e preta amplitude”. A expulsão é um espaçamento necessário, a morte no novo retorno ao barro propiciando a recriação da vida no adágio seguinte do “desenredo”, onde o Deus da vida, guiado pelo princípio de realidade, assume o comando em prol do prazer.
A cena do retorno triunfal da mulher “nua e pura, [...] com dengos e fofos de bandeira ao vento” (p. 40) é uma descrição iconográfica do “Nascimento da Vênus”, de Botticelli[20], pintor que procurou apresentar em uma mesma imagem a dualidade pagã e sacra na pessoa da Vênus pura, remetendo à Virgem cristã, onde Afrodite parece ladeada por panos agitados pelo vento. A Vênus de Botticelli congrega paganismo, neoplatonismo e cristianismo, amor carnal e pureza, utilizando uma imagem a um tempo etérea e voluptuosa[21]; a vil mulher de Jó Joaquim, pintada nua e pura, volta para propiciar-lhe “em delícias” (p. 14).
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Notas
[1] “Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão.” (ROSA, 1979 p. 38)
[2] A mulher ao ser descrita como tendo olhos de viva mosca remete-nos ao inverso de mosca-morta, porém reafirma o significado dessa palavra composta, pois, conforme o Aurélio, seu primeiro significado é “Pessoa dissimulada, aparentemente inofensiva” (FERREIRA, 1986, p. 1162), que compõe com uma pessoa esperta, “viva”. Além disso, “mosca” significa, segundo o Aurélio, “Pessoa importuna, impertinente, insistente. [...] Pinta [...] artificial que se usa no rosto.” (FERREIRA, 1986, p. 1162), hábito comum entre mulheres vulgares.
[3] Conferir nota 2.
[4] “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.” (ROSA, 1986, p. 38)
[5] Conferir FERREIRA, 1986, p. 1435: quim(i) é um elemento de composição = a “química”.
[6] A partir dessa citação as demais referências ao conto serão apresentadas apenas com o número da página entre parênteses.
[7] Conferir FERREIRA, 1986, p. 1781.
[8] Conferir “Nela acreditou num abrir e não mais fechar de ouvidos.” (p. 39)
[9] “Até que - deu-se o desmastreio.” (p. 38)
[10] Confira “Esperar é reconhecer-se incompleto.” (p. 38)
[11] Em “Sota e barla” também podemos interpretar a odisséia de seu protagonista como sendo a de uma busca de “Vilírias”. Doriano “navega” em dois sentidos: um para encaminhar ao dono a boiada que comanda, e outro para escolher entre “dois amores contrários” (p. 167), aguardando sua decisão: a Aquina e Bici, ambas cobiçadas pelo rival Drujo, também conduzindo simultaneamente outra boiada para o mesmo dono. Bici, cujo nome dobra as sombras (bi + ci, sendo “ci(a)” um elemento de composição significando sombra, conforme verbete In. FERREIRA, 1986, p. 401), era moça pura, “para ser noiva” (p. 169). Já Aquina, que remete a ausência de quina, relembrada “no sombreado” (p. 169), era marafona. Temendo que o vaqueiro caçasse e “tremetesse [tres + meter] com alguma delas” (p. 170), Doriano, no final de sua jornada, decide ficar com as duas. Garante a posse de ambas enviando dois de seus vaqueiros para representá-lo. Um, o mais confiável e afável, para levar o recado de que em breve faria uma visita para pedir a mão de Bici em casamento, aos pais dessa. O outro, o mais grosseiro e bravo, o Rulimão, despachou com dinheiro para usufruir de Aquina, e com ordens de combate para qualquer “vindiço”. Esse conto com características de bangue-bangue indica no título tanto o sentido do vento sobre a embarcação, ou seu rumo semelhante a uma antiperipléia (barlavento refere-se à borda do navio que fica do lado de onde o vento sopra nas velas e barlaventear significa dirigir o navio na direção contrária à do vento), quanto a carta de baralho (sota é a dama nas cartas de baralho). Pela sonoridade, o título também pode ser traduzido com “Xota e bala”, um faroeste brasileiro em busca das damas Virílias.
[12] “Nela acreditou num abrir e não fechar de ouvidos.” (p. 39)
[13] “apostrofando-se, como inédito poeta e homem.” (p. 39)
[14] “Job ou Jó, personagem bíblico, conhecido pelo livro redigido no séc. V a.C. e que traz seu nome. Quis Deus pôr a prova suas virtudes, permitindo que Satanás o sujeitasse a uma série de padecimentos e vexames: despojado de suas riquezas, posto num monte de esterco, invectivado por sua mulher e seus amigos, que dele escarneciam, Job nunca deixou de louvar ao senhor. (O esterco de Job, a pobreza de Job, a paciência de Job são motivos de freqüentes alusões.) (DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO KOOGAN LARROUSSE SELEÇÕES, 1979, v.2, p. 1323)
[15] Em LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade - Formas das Sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980, o autor expõe a questão: “Quanto mais nos sentimos integrados em uma cultura, [...] tanto mais perdemos a possibilidade de saber o que significa esta inserção [...]. A ambiência social nos atravessa como se fosse nossa própria natureza. Cultura, classe, camada, meio profissional parecem-se então a roupas muito leves, tão leves que a pele não sente que as transporta. [...] a inserção em um agrupamento [...] se realiza, de imediato, pelo acesso a uma rede de símbolos. Esta rede funciona como uma atmosfera. A ela chamamos de representação.”
[16] “[...] a língua é um corpo de prescrições e de hábitos, comum a todos os escritores de uma época. [...] é como uma natureza que passa inteiramente através da fala do escritor, sem contudo dar-lhe forma alguma e nem sequer alimentá-la: é como um círculo abstrato de verdades, fora do qual [...] começa a depositar-se a densidade de um verbo solitário. [...] A língua, portanto está aquém da Literatura. O estilo esta além: imagens, um fluxo verbal um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e tornam-se, pouco a pouco os próprios automatismos de sua arte. [...] linguagem autárquica que só mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor, nessa hipofísica da fala , onde se forma o primeiro par das palavras e das coisas, onde se instalam de uma vez por todas os grandes temas verbais de sua existência.” BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escritura. São Paulo: Cultrix, 1971
[17] Conferir verbete de “Tradução” no Glossário de Derrida supervisionado por Silviano Santiago, aqui apenas um trecho: “A tradução é um ato de força do tradutor, na medida em que não leva em conta todos os significados latentes, permanecendo apenas no nível manifesto. É sempre centrado por querer colocar um dos níveis da significação como depositário de todo o significado.” (SANTIAGO, 1976, p. 95)
[18] Conferir A História de Jó no Antigo Testamento (BÍBLIA, 1962, v.2, p. 110-142)
[19] Conferir verbete “remir” In. FERREIRA, 1986, p. 1482.
[20] CLARK, Kenneth. Civilização. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. “O tema do Nascimento de Vênus, [...], foi baseado no poeta, seu contemporâneo, Poliziano, pertencentes a um grupo de florentinos perspicazes que procuravam inspiração nos últimos filósofos gregos, os neoplatônicos. Ambicionavam conciliar esses filósofos pagãos com o cristianismo, motivo por que a Vênus de Botticelli, longe de ser uma prostituta sensual do paganismo, é uma figura recatada e lívida que se funde na imagem que ele tem da virgem.” ( p. 127 ).
[21] Os corpos pintados por Botticelli “são mais esguios e desprovidos de peso e força muscular, como se flutuassem, mesmo quando tocam o chão. [...] Os corpos, ainda que etéreos, conservam a sua voluptuosidade.” JANSON. H.W. História da Arte. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes. 1992. P.432.

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