ANEXOS - APONTAMENTOS TEÓRICOS

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Recorrendo a Derrida e a Freud
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Para realizar a leitura proposta utilizei os “quase transcendentais” [1] derridianos indecidível, différance, posterioridade, suplemento e arquiescritura, que facilitam compreender os mecanismos da economia da morte. Adoto também a teoria freudiana sobre as pulsões de morte e vida, ressaltando os princípios através dos quais elas se manifestam.
Esses “operadores textuais” propiciaram-me o ato de audácia que consiste em aguçar uma escuta dos sons encantatórios do texto rosiano e realizar uma leitura desbravadora de seu corpo, que se torna tridimensional quando nele penetramos através de incisões.[2]
Para situar a leitura que Derrida realiza de Freud é preciso primeiro entender o diálogo que Derrida estabelece com a cultura ocidental através de seu “pensamento desconstrutor”. Somente depois desta etapa de esclarecimento é possível localizar o que esse pensador busca na escritura do pai da psicanálise.
Além disso, senti necessidade de resumir os “originais” de Freud tanto para indicar alguns conceitos de sua teoria que utilizarei para interpretar as quatro estórias rosianas investigadas nesta dissertação, como para sobrepor a esses textos freudianos as leituras de Derrida, podendo a partir daí apresentar o que elas radicalizam no pensamento freudiano, utilizando principalmente “Freud e a cena da escritura”.
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A ambiência dos operadores derridianos
Vejamos a ambiência de onde surgem aqueles operadores derridianos.
Derrida busca detectar nos textos de nossa tradição filosófica elementos da metafísica da presença, os quais lê de maneira diferencial buscando expor o “outro” da cultura ocidental.
A metafísica da presença diz respeito à crença na existência de uma verdade a que se tem acesso através da razão, do lógos, na modalidade de uma memória viva (mnéme) que desvela a imagem da “própria coisa”, do “que é”, re-apresentando-a como uma presença plena e original.
Segundo Derrida em “A Estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, a episteme ocidental - ciência e filosofia ocidentais - recolheu da linguagem a palavra e o conceito de estrutura para se metaforizar. Essa metáfora apresenta uma estrutura em equilíbrio a partir da atuação de um centro suposto como detentor do poder e da responsabilidade de comandar todos os possíveis jogos combinatórios entre os elementos componentes da estrutura.
O centro, por sua vez, é visto como uma origem fixa, sendo identificado como uma “presença” dotada de uma noção de verdade. Esta formatação do lugar central interdita o jogo de substituições dos elementos dessa região. Ao ser assim qualificado o centro se torna distinto dos outros componentes estruturais intercambiáveis. Por não se identificar com esses elementos o centro é alijado da estrutura, é remetido para fora dela. Ao mesmo tempo o significado do termo “centro”, que supõe uma presença interior, novamente o puxa para dentro.
Essa situação contraria a coerência estrutural representada a partir do centro e que é a condição para a existência da episteme como filosofia ou como ciência. Partindo da afirmação de que a coerência na contradição expressa a força de um desejo, Derrida afirma que a adoção desse modelo resulta de uma vontade de dominar a angústia de se sentir incluso num jogo instável. A metáfora da estrutura centrada funciona como uma rede para encobrir o movimento da vida, gerando um efeito de estabilidade e um sentimento de tranqüilidade. Segundo esse pensamento, a episteme Ocidental é uma construção simbólica, nascida em determinado contexto histórico como resposta a um desejo de proteção.
Ao longo da história da metafísica ocidental o centro recebe diversos nomes. Esses invariavelmente se referem à origem (arquê) ou à finalidade (telos). A matriz dessas permutas é o “ser como presença em todos os sentidos desta palavra. Poder-se-ia mostrar que todos os nomes do fundamento, do princípio, ou do centro, sempre designaram o invariante de uma presença (eidos, arquê, telos, energeia, ousia (essência, existência, substância, sujeito) aletheia, transcendentalidade, consciência, Deus, homem, etc.).” (DERRIDA, 1971, p. 231) Essas repetições, substituições e transformações constituem apenas uma história da produção de sentido no ocidente. Por sua vez, a história da metafísica narra o encadeamento regular e sucessivo das diferentes formas ou nomes do centro dessa estrutura em que se metaforizou. É possível interpretá-la como a história da pretensão de uma superioridade racional por parte do Ocidente, justificando sua atitude imperialista em face de outras culturas.
A presença privilegia a fala em relação à escrita, por ser o discurso uma articulação viva de seu autor. Em contraposição, o texto escrito é tido como uma cópia da fala, oferecendo perigo ao supri-la, porque ‘“repete sem saber’ a realidade do ente presente que é o lógos” (NASCIMENTO, 1999, p. 107), constituindo-se em uma rememoração (hypómnesis) relacionada ao morto, em oposição à presença viva do discurso que ativa a mnéme.
Na base do centramento da epistéme ocidental na fala e no lógos, nomeado por Derrida de phonologocentrismo, encontra-se a delimitação de pares de valores opositivos, como vivo/morto, presente/ausente, bem/mal, verdadeiro/falso, essência/aparência, etc., tendo como molde a dupla dentro/fora, estabelecendo a noção de pureza de uma essência não contaminada pelo exterior, ato que recorta uma fronteira e constitui a “verdade”. Cabe ao lógos decidir, julgar a prioridade de um dos termos dos pares e excluir o outro. Esta atividade de destilação das essências é metaforizada em A Farmácia de Platão (DERRIDA, 1991), texto onde Derrida lê o Fedro a partir das metáforas que dizem respeito à ambivalência da escritura, tratada como um phármakon, palavra cujo sentido conforme o contexto pode ser ativado como veneno ou remédio. O outro da cultura ocidental, que Derrida procura expor a partir dos próprios textos desta tradição, relaciona-se ao elemento expurgado no ato de destilação com vistas à constituição de um determinado sentido, tido como “puro”.
Derrida ressalta, em “A Estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, que a sucessão de substituições do nome do centro desencadeou um pensamento sobre a lei dirigente do desejo de uma estrutura centrada. A partir daí se começou a refletir sobre a possibilidade desse centro não existir, sobre a inviabilidade de sua forma como um “sendo-presente”, bem como se iniciou um questionamento sobre a naturalidade e a imobilidade de sua localização. O centro passou a ser visto apenas como “uma função, uma espécie de não-lugar no qual se faziam indefinidamente substituições de signos” (DERRIDA, 1971, p. 232). O espaço central, assim esvaziado, foi inundado pela linguagem. Esta, com sua finitude, ao desinterditar o centro, autorizou um jogo infinito de substituições. Nestas circunstâncias o significado central somente se apresenta como um sistema de diferenças, de configurações de signos.
Esse pensamento descentralizador pertence à nossa época. Freud, ao lado de Nietzsche e Heidegger, é um dos pensadores cuja produção mais radicalizou essa formulação com sua crítica da “presença a si, isto é, da consciência, do sujeito, da identidade a si, da proximidade ou da propriedade a si” (DERRIDA, 1971, p. 232), indicando a consciência não como a essência do psiquismo, mas como uma sua qualidade “que pode achar-se presente em acréscimo a outras qualidades, ou estar ausente” (FREUD, 1976, v. XIX, p. 25). Esses três pensadores “fornecem instrumental de base para as estratégias desconstrutoras”. (NASCIMENTO, 1999, p. 22)
Em “Freud e a cena da escritura” Derrida busca reconhecer em textos de Freud “aquilo que da psicanálise se deixa dificilmente conter no fechamento logocêntrico [...]” (DERRIDA, 1971, p. 182). Derrida alerta, nesse texto, para o fato de que os conceitos freudianos estão capturados pelo phonologocentrismo, organizados para excluir o corpo do traço escrito, e indica um movimento desencadeador de uma indecidibilidade a partir da sintaxe freudiana que faz com que ao mesmo tempo Freud ultrapasse a metafísica da presença.
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Indecidível
Antes de prosseguir é preciso qualificar o termo indecidível.
Também designado de operador textual, operador de generalidade, quase-transcendental, trata-se de uma nomenclatura derridiana para o “Elemento ambivalente sem natureza própria, que não se deixa compreender nas oposições clássicas binárias: elemento irredutível a qualquer forma de operação lógica ou dialética.” (SANTIAGO, 1976, p. 49). O indecidível indica a ausência de significados transcendentais e de referentes, e trata a referência como uma inscrição assinalada a partir de um traço, de um rastro, de um registro. Ele produz um efeito de meio onde simultaneamente habitam dois termos opositivos, não sendo nem um, nem o outro termo e ao mesmo tempo sendo ora um, ora o outro. Os indecidíveis empreendem um abalo de caráter sintático-semântico que desarticula a equivalência ou a analogia, deslocando a função de série. Retira do lógos o poder de decidibilidade quanto à prioridade de um dos termos dos pares opositivos. Ele produz um efeito de meio onde o sentido se configura compondo com os signos vizinhos.
Voltemos à leitura feita por Derrida dos modelos freudianos que explicam as funções de memória e percepção do aparelho psíquico em “Freud e a cena da escritura”. Esses modelos procuram dar conta da dupla e contraditória exigência do aparelho mental: a de reter impressões duráveis para constituir a memória, e a de ser capaz de sempre se oferecer virgem a novas recepções. Derrida se interessa por esses modelos porque desde a primeira iniciativa eles desenvolvem um pensamento sobre um sistema de traços, impressões, rastros que cada vez mais se conformam a uma metáfora da escrita, até esta ser explicitamente desenvolvida.
A metáfora da escrita em Freud abre uma discussão sobre o sentido de qualquer marca. O indecidível derridiano arquiescritura radicaliza o conceito freudiano de traço, sinalizando para a possibilidade de a própria significação ser um devir-signo do signo e para a “origem possível da linguagem enquanto origem re-marcada do signo em geral” (NASCIMENTO, 1999, p. 138), colocando a significação como um processo em movimento no lugar das imagens estanques, delineadas, delimitadas, oferecidas pelas “verdades” da metafísica da presença.
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Freud: “Projeto para uma psicologia científica” e “Uma nota sobre o ‘bloco mágico’”
Para melhor desenvolver as discussões de Derrida sobre o pensamento freudiano, sintetizarei dois trabalhos analisados em “Freud e a cena da escritura”, após o que acrescentarei a leitura suplementar desses mesmos textos por Derrida.
Nesses textos de Freud encontramos duas ordens de modelo do psiquismo: uma neurológica, no “Projeto para uma psicologia científica”, de 1895, e outra metafórica, em “Uma nota sobre o ‘bloco mágico’”, de 1925. Derrida lê os dois artigos como metáfora. De certa maneira, também Freud assim os lê, conforme podemos inferir de sua afirmação em “Além do princípio do prazer” sobre a necessidade da psicologia profunda de lançar mão de uma linguagem figurativa para pensar os “obscuros e desnorteantes” processos dos eventos psíquicos:

Isso se deve simplesmente ao fato de sermos obrigados a trabalhar com termos científicos, isto é, com uma linguagem figurativa, peculiar à psicologia.[grifo nosso] (ou, mais precisamente, à psicologia profunda). Não poderíamos de outra maneira descrever os processos em questão e, na verdade, não nos teríamos tornado cientes deles. As deficiências de nossa posição provavelmente se desvaneceriam se nos achássemos em posição de substituir os termos psicológicos por expressões fisiológicas ou químicas. É verdade que estas também são apenas parte de uma linguagem figurativa, [grifo nosso] mas trata-se de uma linguagem com que há muito tempo nos familiarizamos, sendo também, talvez, uma linguagem mais simples. (FREUD, 1976, v. XVII, p. 81)
“Projeto para uma psicologia científica”
O objetivo do “Projeto” é tornar a psicologia uma ciência natural. Para atingir essa finalidade Freud parte de duas idéias principais: a da “excitação neuronal como uma quantidade em estado de fluxo”, nomeada como Q, e a consideração dos neurônios como partículas materiais. Os processos psíquicos são representados “como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis” (FREUD, 1976, v. I p. 403).
A relação estabelecida pelos neurônios com as quantidades em estado de fluxo procedentes do mundo exterior é determinada pelo princípio da inércia neuronal, uma tendência que possuem de se livrarem de toda Q, zerá-la descarregando-a em mecanismos musculares, atitude defensiva que constitui a função primária do sistema nervoso.
Além dos estímulos externos, o aparelho mental recebe os de origem endógena, que também pressionam por descarga. “Esses estímulos se originam nas células do corpo e criam as grandes necessidades: fome, respiração, sexualidade” (FREUD, 1976, v. I p. 405). Descritos como as exigências da vida, eles exigem do organismo a realização de ações “específicas” no mundo exterior, com a finalidade de atender suas demandas. O fluxo dos estímulos endógenos somente se interrompe com a satisfação de suas necessidades. Por esse motivo a estratégia utilizada para descarregar os estímulos externos através da musculatura não funciona para os estímulos internos. Isso obriga o sistema nervoso a modificar sua tendência a reduzir a zero o nível de Q, passando a tolerar uma retenção de Q’h suficiente para permitir a realização de ações no mundo externo voltadas para saciar as exigências da vida[3]. Essa função modificada é chamada por Freud de secundária. Ela preserva a tendência primária na medida em que se empenha em manter a excitação neuronal proveniente do mundo externo “no mais baixo nível possível e de se resguardar contra qualquer aumento da mesma - ou seja, mantê-la constante. Todas as funções do sistema nervoso podem ser compreendidas sob o aspecto das funções primária ou secundária impostas pela exigência da vida.” (FREUD,1976, v. I, p. 406)
O princípio da inércia neuronal supõe uma corrente que parte das vias de condução dos neurônios [dendritos], em direção ao órgão de descarga [cilindro axial]. Daí se concluiu que em um determinado momento um neurônio pode estar cheio de Q [catexizado], e em outro vazio.
A função secundária do sistema nervoso ao requerer acumulação de Q aponta para a existência de forças se opondo à descarga de energia. Essas resistências localizam-se nas barreiras de contato entre os neurônios. Segundo esse pensamento, o protoplasma - conteúdo vivo da célula - opõe resistência quando se encontra indiferenciado e aumenta sua capacidade condutora quando se modifica. A diferenciação do protoplasma decorre do processo que sofre quando se vê atravessado por Q.
A hipótese da barreira de contato possibilita explicar a contraditória exigência do aparelho psíquico - de reter as impressões duráveis e de se apresentar virgem a novas recepções - a partir de dois tipos de neurônios: os permeáveis (f), que não opõem resistência e por isso não guardam qualquer rastro da experiência vivenciada, e os y, que oferecem resistência e configuram a memória.
Os neurônios f voltam-se para a percepção de estímulos externos, expondo-se por isso a grandes quantidades de energia que pressionam para serem rapidamente descarregadas. Essa atividade é facilitada tanto pelo fato desses neurônios estarem ligados ao aparelho da motilidade como por serem permeáveis.
Já os y recebem excitações oriundas tanto de f como do interior do organismo, são dotados de resistência e retentivos de uma parcela de Q, o que os habilita a representar a memória através das diferenças no grau de facilitação [Bahnung] de suas barreiras de contato. As facilitações consistem no aumento diferenciado de permeabilidade inscrito nas barreiras de contato pela passagem de excitação.
Assim, morfologicamente iguais, os neurônios distinguem-se pela diferença de permeabilidade decorrente da quantidade de energia com que têm de lidar. A magnitude energética que atravessa os neurônios f praticamente anula as resistências de suas barreiras de contato. O mesmo não acontece com as dos neurônios y, por onde passam quantidades da mesma ordem de magnitude de suas resistências. Dessa forma, a “diferença na essência de ambos é substituída por uma diferença na ambiência a que estão destinados.” (FREUD, 1976, v. I p. 414)
Cada neurônio y se relaciona com outros neurônios através de diversas barreiras de contato, independentes entre si. Isso institui uma possibilidade de escolha determinada pela facilitação, viabilizando a ocorrência de preferência ou motivação. A facilitação decorre do arrombamento das barreiras de contato realizado pela Q fluente (e não na que catexiza o neurônio). Assim, a memória de uma experiência é a força eficaz contínua dessa experiência, o que está na dependência da magnitude da impressão e da freqüência com que ela se repete.
Os neurônios f acham-se protegidos das energias exógenas pelos aparelhos nervosos terminais dos nossos cinco sentidos, que funcionam como telas de Q em sua periferia, recebendo e fracionando os estímulos para que estes não atinjam f com sua intensidade total.
Quando as telas de proteção falham, f é invadido por elevadas quantidades de energia exógena, que ocasionam a irrupção de grandes quantidades de Q também em y. Esse evento gera, a partir de y, a sensação de dor, que deixa como rastro facilitações permanentes nesse sistema, instaurando uma via de comunicação como as que existem em f. Em conformidade com sua tendência primária, o sistema nervoso tem a mais decidida propensão a fugir da dor.
Como os sistemas neuronais f e y não respondem pelo fenômeno da “consciência”, Freud presume um terceiro, o w, excitado junto com a percepção, mas não com a reprodução. Este sistema, além de receber um mínimo de Q, apropria-se da natureza temporal existente nos movimentos de massas do mundo exterior, não inibida pela barreira de contato e, por isso, induzida através do período da excitação dos neurônios y aos w. A consciência possui como conteúdo as sensações de prazer e desprazer e a série de qualidades sensoriais. O desprazer ocorre em w quando aumenta a Q em y. Já o prazer corresponde à sensação de descarga.
O funcionamento econômico desse modelo fisiológico é visualizado a partir de uma divisão tópica entre os sistemas Perceptivo-Consciente e Inconsciente, cabendo ao primeiro a excitação inicial e a possibilidade de seu devir-consciência e ao segundo a impressão do rastro durável.
Vejamos como nesse modelo Freud indica o funcionamento do aparelho psíquico.
No “mundo externo, os processos exibem uma sucessão contínua em duas direções, segundo a quantidade e o período (qualidade)” (FREUD, 1976, v. I p. 426) Os estímulos correspondentes a esses processos esbarram nos órgãos dos sentidos que funcionam como telas de proteção e como peneiras para os neurônios f. Agindo como telas, fracionam as energias externas em magnitudes provavelmente superiores às Q intercelulares e atuando como peneiras selecionam as energias por tipo de estímulo, de forma que os pontos terminais diferenciam-se segundo a modalidade de estímulos que são capazes de receber.
A qualidade dos estímulos não encontra obstáculos e por isso se propaga livremente de f para y até w onde produz sensação consciente, sendo rapidamente escoada para o lado motor, não imprimindo rastro e nem deixando lembrança.[4]
Já a quantidade de energia que passa por f, boa parte flui do sistema nervoso para o aparelho de motilidade, atingindo os músculos, as glândulas, etc. onde atua transformando-se em excitação motora proporcional. A outra parcela, uma pequena fração de Q possivelmente da magnitude de um estímulo intercelular, é transferida para os neurônios y. Quando a energia que entra em f aumenta a parcela destinada a y se distribui na catexização simultânea de vários neurônios. Essa repartição de fluxo energético é mais uma estratégia para evitar a entrada de grandes quantidades de excitação nos neurônios y, e indicam que uma “quantidade em f se expressa em y por enredamento” (FREUD, 1976, v. I p. 428).
Os neurônios y dividem-se em dois grupos segundo a proveniência da energia a que estão expostos: os pallium são catexizados a partir de f e os nucleares recebem as excitações oriundas do interior do organismo.
A produção dos estímulos endógenos é ininterrupta, mas só esporadicamente eles atingem o aparelho psíquico. Isso se deve à existência de uma série de barreiras de contato intercaladas ao longo da via que os conduz a y. Essas trincheiras apenas são rompidas quando sofrem a pressão de um acúmulo de Q, a partir daí as excitações endógenas atuam de forma contínua, sendo cada aumento percebido nos neurônios nucleares. Este processo decorrente da adição de pequenos estímulos se denomina soma. Ele deixa y à mercê de Q e estabelece “no interior do sistema o impulso que sustenta toda a atividade psíquica [...]. Conhecemos essa força como vontade - o derivado das pulsões.” (FREUD, 1976, v. I p. 430)
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Voltando a Derrida.
Segundo ele a análise freudiana combina o método científico com a especulação filosófica e, apesar de utilizar conceitos do campo da metafísica - como os de consciência, inconsciente, percepção, memória e realidade -, produz uma camada de pensamento com noções como “exploração”, “barreiras de contato”, “resistência”, “arrombamento”, “abertura de caminho”, “rastro” e “retardamento”, que não se prende ao saber positivista do século XIX. Derrida radicaliza esse pensamento com os operadores textuais différance, posterioridade, suplemento e arquiescritura a partir de um trabalho indicativo da impossibilidade da memória, conforme o “Projeto”, derivar da oposição entre quantidade e qualidade de Q.
Passo a repetir, a partir de Derrida, outro resumo do “Projeto”, de forma a apresentar o recorte que sua leitura realiza em Freud, e como a suplementa.
O sistema nervoso contorna perseverantemente sua fragilidade frente à exposição a grandes energias externas e internas, através de mecanismos de evitação, proteção e parcelamento das mesmas.
A memória é considerada por Freud como a própria essência do psiquismo. Ela é uma encenação realizada através da diferenciação que o arrombamento inscreve nas “grades de contato” (barreira de contato). Derrida acentua que a inscrição na memória não se vincula puramente à quantidade energética. Ela não ocorre pelo arrombamento de valores energéticos plenos, pois isso saturaria o sistema em pouco tempo. A energia fracionada pelas telas de proteção é transformada em freqüência, em “repetições discretas que agem como tal pelo diastema que as mantém afastadas” (DERRIDA, 1971, p. 186).
Assim, a memória se origina na diferença entre as explorações que envolve dessemelhanças tanto nas magnitudes das resistências que as barreiras de contato opõem à exploração, como nas forças de exploração. Segundo Derrida só poderia ser dessa maneira, caso contrário a memória paralisaria por não haver possibilidade de preferência na escolha dos itinerários. “O traço como memória não é uma exploração pura que sempre se poderia recuperar como presença simples, é a diferença indiscernível e invisível entre as explorações. Sabemos assim que a vida psíquica não é nem a transparência do sentido nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho das forças. Nietzsche dizia-o bem.” (DERRIDA, 1971, p. 185)
A repetição de frações de energia não acrescenta quantidade nem intensidade a uma força presente. Ela reedita a mesma impressão, porém adicionada de um poder de exploração. As quantidades de repetição e de excitação são de ordens heterogêneas. Derrida interpreta as diferenças envolvidas na produção do traço [memória] como momentos da diferença. Com esse raciocínio indica que a memória escapa ao domínio de um “naturalismo” e de uma “fenomenologia” por não derivar da quantidade e nem da qualidade, avançando assim com o raciocínio freudiano.
O movimento produtor da memória é descrito por Freud como “esforço da vida protegendo-se a si própria, diferindo o investimento perigoso, isto é, constituindo uma reserva (Vorrat). O gasto ou a presença ameaçadora são diferidos com a ajuda da exploração ou da repetição.” (DERRIDA, 1971, p. 186) Essa afirmação leva Derrida a perguntar se já não é a partir desse desvio que o prazer se submete à realidade, e se já não está indicada aí a sobreposição da morte à vida, visto que esta só consegue se defender daquela economizando-a pela repetição e pela reserva, através da produção da différance.
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A indecidível différance
Neste momento é preciso mais uma interrupção para esclarecer o indecidível différance.
Esse é um termo criado por Derrida a partir de uma intervenção na palavra francesa differénce, onde o “e” da terceira sílaba é substituído por um “a”. Essa modificação é perceptível apenas na ortografia e não através da pronúncia, o que ressalta a função do grafema e desloca o privilégio atribuído pela metafísica da presença à fala.
A rasura que gera a différance indica que a origem do processo de nominação baseia-se no rastro, que somente é transformado em linguagem a partir de uma tradução que re-interpreta sua origem “não-simples”. Para se pensar nesta origem não-simples lembremos-nos da força que se parcela e se repete acrescentada de poder de exploração, no arrombamento que inscreve o rastro mnésico, e no enredamento que constitui a memória. Conforme verbete do Glossário de Derrida “A tradução é um ato de força do tradutor, na medida em que não leva em conta todos os significados latentes, permanecendo apenas no nível manifesto. É sempre centrada por querer colocar um dos níveis da significação como depositário de todo o significado” (SANTIAGO, 1976, p. 95). Neste sentido o rastro original é traduzido para uma linguagem dominada pela metafísica da presença, que busca imobilizar o jogo de composição sígnica, simplificando a origem não-simples do rastro. A tradução é um ato de poder, de decisão, de julgamento, de imobilização da ambivalência do rastro.
O “a” de différance enreda neste termo o vocábulo différant, particípio presente de différer, e com ele os dois sentidos distintos de sua raiz: o de diferir - demorar, dilatar, adiar, prorrogar, delongar, esperar, aguardar - e o de alteridade - dessemelhança, polêmica, divergência de opinião, dissensão. Derrida representa esses sentidos a partir de duas idéias de intervenção: uma no âmbito temporal e outra no espacial. Assim, o primeiro significado de différer é traduzido por temporizar: “diferir por meio de um desvio econômico, aceitando conscientemente ou não a mediação temporal que suspende a realização de um desejo ou de uma vontade.” (NASCIMENTO, 1999, p. 141). Já para o segundo sentido faz corresponder à noção de espaçamento, ressaltando as idéias de intervalo e de distância que distinguem elementos pela separação que realizam.
A aproximação da différance ao duplo sentido do verbo différer situa este indecidível no ato do desvio econômico (temporização), antecedente e instaurador do espaçamento que produz um efeito de diferente, ou différence. “A différance constituiria o meio (milieu) no qual os diferentes e as diferenças seriam produzidos, como efeitos constituídos”. (NASCIMENTO, 1999, p. 142) Esclarecedora é a citação que Nascimento faz de Derrida:

[...] devemos reconhecer que é na zona específica dessa impressão [empreinte] e desse rastro, na temporalização de um vivido que não está nem no mundo nem no ‘outro mundo’, que não é mais sonoro que luminoso, nem está mais no tempo do que no espaço, que as diferenças aparecem entre os elementos, ou antes, os produzem, fazem-nos surgir como tais e constituem textos, cadeias e sistemas de rastros. Essas cadeias e esses sistemas somente podem se desenhar no tecido desse rastro ou impressão (DERRIDA, 1967a, p. 95, apud NASCIMENTO, 1999, p.143)
A différance como uma produção da temporização e do espaçamento sugere uma concepção metafísica de causa e efeito, idéia desmobilizada pela indecidibilidade de significado da terminação -ance em francês, sufixo que remete tanto para a atividade como para a passividade, referindo-se simultaneamente à produção e ao efeito.
A indecidibilidade da différance não é apenas conceitual, é sobretudo um movimento textual surpreendente por oferecer o princípio de identidade ao mesmo tempo em que o rasura. O rastro e a différance possuem como única propriedade o fato de se apresentarem divididos, tornando-se irredutíveis a qualquer realidade ontológica. A dialética não dá conta de explicar esta coisa, este local onde uma suposta identidade se origina e que Derrida indica pelos nomes de différance, rastro, hymen, entre outros.
Na lógica da différance o sentido de um termo só pode ser apreendido no jogo das diferenças e dos diferentes. O nome não mais se relaciona a um significado transcendental, a um ente-presente, nem a qualquer instância material. “O logocentrismo perde aqui suas referências. O significante é o significado, e ambos se vêem inscritos numa estrutura que oscila, indecidível, entre um e outro, criando a cada vez novas referências [...], novos efeitos de contexto.” (NASCIMENTO, 1999, p. 145)
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A arquiescritura
Derrida nomeia de arquiescritura a repetição que ocorre já na origem da inscrição com a finalidade de retardar o arrombamento definitivo. Essa repetição reserva inscrição mnésica com uma dupla finalidade, tanto para facilitar a passagem de fluxos posteriores como para adiar o dispêndio final, que é a desestruturação do sistema ocasionada pelo arrombamento fatal de uma grande quantidade energética. Consiste assim em uma economia da morte, conforme designação derridiana a partir de Freud, que por se encontrar na origem da inscrição denega a função primária do sistema nervoso, questionamento que Derrida explicita no final de “Freud e a cena da escritura”.
A arquiescritura se dá na ambivalência fundamental entre pulsão de vida e de morte. De vida tanto no sentido de constituição como de preservação. A repetição constitui a vida ao servir à função secundária voltada para atender as exigências vitais como fome, respiração e sexualidade, e a preserva ao evitar o arrombamento drástico fatal ao sistema. De morte, porque esta é encenada no espaçamento que a economiza adiando-a. Trata-se de uma cadenciada repetição na diferença da morte autorizando a vida, até o dispêndio final.
Este indecidível não diz respeito a uma repetição que “sobrevém à primeira impressão, a sua possibilidade já ali está, na resistência pela primeira vez oferecida pelos neurônios psíquicos. A própria resistência só é possível se a oposição de forças durar ou se repetir originariamente. É a própria idéia de primeira vez que se torna enigmática” (DERRIDA, 1971, p. 187). Desta forma é a arqué da escritura que se vê rasurada através do itálico, e em seu lugar temos todo o movimento instável e indecidível do devir-signo do signo. Neste pensamento a essência da vida não se refere a uma presença, substância ou sujeito e sim a um mecanismo da vida protegendo-se pela repetição, pelo rastro, pela différance. A vida é o rastro e o originário é o atraso, a não-origem.
A economia de morte já na origem da vida dialoga com o conceito de pulsão em Freud e com os princípios de constância, nirvana, prazer e realidade. Assim é preciso antecipar esta discussão necessária para desdobrar o pensamento sobre a arquiescritura.
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Pulsões de vida e de morte
O conceito de pulsão e os princípios que norteiam o funcionamento do aparelho psíquico e que expressam as tendências pulsionais, serão tratados a partir dos textos de Freud “Além do princípio do prazer”, “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” e “Os Instintos e suas vicissitudes” e do Vocabulário da psicanálise, de Laplanche e Pontalis.
Para Freud a pulsão é um representante psíquico dos estímulos originários no interior do organismo que se dirige ao aparelho mental para exigir dele uma atuação consonante com o corpo. Trata-se de um conceito situado entre o mental e o somático[5]. Segundo a interpretação de Laplanche e Pontalis a pulsão é um
Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, factor de motricidade) que faz tender o organismo para um alvo. Segundo Freud, uma pulsão tem sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu alvo é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir o seu alvo. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 506)
Em “Além do princípio do prazer” Freud indica uma oposição entre dois tipos de pulsões: a de morte e a de vida, esta também denominada Eros ou pulsão libidinal.
As pulsões de morte propendem para a completa redução das tensões. Representam a inclinação de todo ser vivo para retornar ao repouso absoluto do anorgânico, o estado antecessor da vida. Esse raciocínio supõe o ser-vivo oriundo e posterior ao não-vivo, e a pulsão de morte, para além de um tipo especial de pulsão, como sendo a designação do que constitui toda e qualquer pulsão, cujo alvo é o retorno ao estado anterior de tensão que a ativa. Este objetivo denota o caráter regressivo e conservador das pulsões. Assim, a tendência da pulsão de morte para a destruição expressa o princípio mais radical do funcionamento psíquico e liga “qualquer desejo, agressivo ou sexual, ao desejo de morte.” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 531).
Uma parcela da tendência da pulsão de morte para a autodestruição é deslocada para fora do organismo pela libido. Essa alteração de rumo implica em dois tipos de comportamento face aos objetos do mundo exterior: demolidor, quando se manifesta como pulsão agressiva ou destrutiva voltada para a dissolução de agregados vitais e aniquilação das coisas; ou erótico, quando se coloca a serviço das pulsões sexuais, fundindo-se com elas.
Já a pulsão erótica, coincidindo com o Eros dos poetas e dos filósofos, “procura reunir e manter juntas as partes da substância viva” (FREUD, 1976, v. XVIII p. 82). Ao se voltar para os objetos do mundo exterior recebe o nome de pulsão sexual. Quando se dirige ao próprio ego do sujeito é batizada como pulsão autoconservadora e narcisista.
A libido possui um movimento oposto ao da pulsão de morte. Possui como princípio subjacente uma atitude de ligação direcionada para a constituição e conservação de unidades cada vez maiores, ao invés de se orientar para uma direção regressiva, para um estado anterior e menos organizado da vida até o anorgânico. Esta é uma tendência que já se apresenta no plano celular, provocando e mantendo coesas as partes da substância viva. Na sexualidade o princípio de união se manifesta tanto na cópula como na fecundação dos gametos.
Para adequar Eros à fórmula geral de conservadorismo das pulsões, Freud recorre ao mito narrado por Aristófanes e citado por Platão no Banquete. Segundo o comediante “o acasalamento sexual procuraria restabelecer a unidade perdida de um ser originariamente andrógino, anterior à separação dos sexos.” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 538) Entretanto, em algumas passagens da obra freudiana, Eros permanece contrariando o conservadorismo pulsional por exemplo, quando é descrito como uma força que ao introduzir distúrbios no processo da vida mantém o organismo em atividade, requer a transformação de energia livre em ligada, tornando-se um empecilho à total eliminação de Q e, portanto, opondo-se à tendência de retorno ao anorgânico.
Freud indica em uma série de trabalhos a ambígua parceria da pulsão de vida com a de morte. Em “Além do princípio do prazer” utiliza várias metáforas relacionadas à escuridão[6] para indicar o estágio de desenvolvimento de uma teoria sobre as pulsões. O mito relatado por Aristófanes, porém permite a Freud criar uma série de hipóteses a partir das quais pode pensar que as pulsões de morte sempre estiveram associadas às de vida. Seguindo seu raciocínio aventureiro, como ele próprio o define, quando ocorreu a animação da substância viva ela foi dividida em pequenas partículas que as pulsões de vida procuraram reunificar. As pulsões eróticas emergiram e permaneceram quimicamente afinadas com a matéria inanimada. A evolução da vida em seus primórdios, através do reino dos protistas, ocorreu em um ambiente carregado de estímulos perigosos, situação que forçou a criação de uma camada cortical protetora nos protistas, possibilitando aos estilhaçados fragmentos de substância viva atingirem uma condição multicelular e transferirem a agregadora pulsão de vida para as células germinais. Vejamos o que fala Freud em “Além do princípio do prazer”:

Os atributos da vida foram, em determinada ocasião, evocados na matéria inanimada pela ação de uma força de cuja natureza não podemos formar concepção. Pode ter sido um processo de tipo semelhante ao que posteriormente provocou o desenvolvimento da consciência num estrato particular da matéria viva. A tensão que surgiu no que até aí fora uma substância inanimada, se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira, surgiu o primeiro instinto [pulsão]: o instinto a retornar ao estado inanimado. Naquela época, era ainda coisa fácil a uma substância viva morrer; o curso de sua vida era provavelmente breve, determinando-se sua direção pela estrutura química da jovem vida. Assim, por longo tempo talvez, a substância viva esteve sendo constantemente criada de novo e morrendo facilmente, até que influências externas decisivas se alteraram de maneira a obrigar a substância ainda sobrevivente a divergir mais amplamente de seu original curso de vida e a efetuar détours mais complicados antes de atingir seu objetivo de morte. Esses tortuosos caminhos para a morte, fielmente seguidos pelos instintos de conservação, nos apresentariam hoje, portanto, o quadro dos fenômenos da vida. (FREUD, 1976, v. XVIII, p. 56)
No último capítulo de “Além do princípio do prazer”, Freud distingue função de tendência para desenvolver um raciocínio sobre o relacionamento entre a pulsão de morte e Eros. Indica a energia pulsional - libido - como uma tendência operando a serviço de uma função cuja missão é liberar o aparelho mental de excitações, mantê-las em uma quantidade constante, ou tão baixa quanto possível. Essa função se relaciona com o mais fundamental esforço de toda a substância viva que é a de retornar à quietude do mundo inorgânico, coincidindo assim com a pulsão de morte. A sujeição de um ímpeto pulsional, sua postergação, seria apenas uma tarefa preliminar voltada a preparar um nível de excitação a ser finalmente eliminado no prazer da descarga. Freud associa então o maior prazer por nós atingível, o do gozo sexual, à extinção momentânea, altamente intensificada. No capítulo V antecipa esse pensamento sobre a parceria entre as pulsões de morte e vida ao dizer que a função das pulsões autoconservadoras - a parcela de Eros voltada para o ego - é “garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo.” E mais à frente: “O que nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas de seu próprio modo. Assim, originariamente, esses guardiões da vida eram também os lacaios da morte.” (FREUD, 1976, v. XVIII p. 56-57)
As pulsões se manifestam através de tendências que expressam princípios econômicos, administradores da circulação e da repartição de energia pulsional dentro do aparelho psíquico, regulando desta forma seu funcionamento.
Já vimos no “Projeto para uma psicologia científica” dois tipos de processos mentais indicados por Freud: o primário e o secundário. A função primária do sistema nervoso se manifesta através do princípio da inércia, a propensão neuronal para se esquivar das fontes de excitação, e escoar a totalidade das quantidades recebidas de energia. Esta função se modifica, recebendo o nome de secundária ao ser pressionada pelas demandas vitais a partir dos “estímulos endógenos” - expressão que no “Projeto” ocupa o lugar do termo “pulsão” -, passando a manter uma reserva mínima e constante de energia. Vemos aí uma formulação daquilo que 25 anos depois Freud desenvolveria em “Além do princípio do prazer”, nomeando de “pulsão de morte e de vida”.
O raciocínio constitutivo desta hipótese econômica supõe dois modos de circulação energética: um livre, sem barreiras - característico do princípio de inércia -, e outro vinculado, ligado, quiescente ou tônico - distintivo da função secundária.
Em “Além do princípio do prazer” Freud relata que descobriu os processos livremente móveis a partir de seus estudos sobre a elaboração onírica. Analisando a formação dos sonhos desvendou processos fluentes de transferência, deslocamento e condensação de catexias. Associou essa fluência tanto ao funcionamento do inconsciente, devido ao seu “deslizar indefinido de significações” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 461), como ao tipo de movimento das forças oriundas das pulsões, cujo ponto de impacto é o inconsciente. Esses processos livres, exercendo pressão e exigindo descarga, diferem dos vinculados, existentes no pré-consciente e no consciente.
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O princípio de realidade
Freud indica como uma das mais antigas e importantes funções do aparelho mental a sujeição da energia pulsional que com ele se choca, a substituição do predominante processo primário pelo secundário, e a conversão de sua energia catéxica livremente móvel numa energia quiescente (tônica).[7] Essa transformação se vincula à relação que a humanidade em geral estabelece com a realidade. No texto “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, partindo sobretudo das observações clínicas de sintomas dos neuróticos, Freud busca compreender como a significação psicológica do mundo externo e real se relaciona com a estrutura de suas teorias. Segundo ele, nos primórdios da vida do bebê humano os processos mentais são unicamente primários e inconscientes[8], envolvendo apenas circulação energética livre. Esses processos se caracterizam pela busca de prazer, o que inclui a vivificação alucinatória de experiências anteriores de satisfação, atividade persistente nos pensamentos oníricos e nos processos inconscientes dos adultos.
O “Projeto” explica como ocorre esse tipo de alucinação. Uma experiência de satisfação facilita o relacionamento entre imagens mnêmicas e os neurônios catexizados em estado de urgência, também chamado de estado de desejo. Com a descarga de satisfação Q’h se esvai também das imagens mnêmicas. Quando o estado de desejo é reativado, as lembranças a ele associadas são catexizadas, e possivelmente a primeira imagem mnêmica afetada é a do objeto associado à satisfação. Diz Freud: “Não tenho a menor dúvida de que na primeira instância essa ativação do desejo produz algo idêntico a uma percepção - a saber, uma alucinação. Quando uma ação reflexa é introduzida em seguida a esta [alucinação], a conseqüência inevitável é o desapontamento.” (FREUD, 1976, v. I p. 433)
Segundo James Strachey, possivelmente o bebê alucina a realização de suas necessidades internas. Isso acontece quando a quantidade de energia de um aumento de estímulos, acompanhada pela ausência de satisfação e pela catexia das imagens mnésicas associadas à experiência de satisfação, é liberada a partir de sua reversão em descarga motora, por exemplo, gritar e debater-se com os braços e as pernas, liberação energética experimentada pelo bebê como um prazer, corroborando uma vivência alucinatória de satisfação.
O estado de repouso psíquico dessa fase primordial do ser humano é perturbado em suas origens, pois as exigências das necessidades internas persistem até que sejam realmente satisfeitas. O desapontamento experimentado com a ausência da satisfação esperada levou ao abandono da tentativa de satisfação alucinatória, obrigando o organismo a “formar uma concepção das circunstâncias reais no mundo externo e empenhar-se por efetuar nelas uma alteração real. Um novo princípio de funcionamento mental foi assim introduzido: o que se apresentava na mente não era mais o agradável, mas o real, mesmo que acontecesse ser desagradável.” (FREUD, 1976, v. XII p. 278-279)
A partir dessa situação, o aparelho psíquico, baseado no princípio do prazer, é solicitado a adaptar-se às exigências do princípio de realidade, que faz crescer a significação do mundo exterior para a sobrevivência do organismo. Esse acontecimento impele o desenvolvimento de várias funções psíquicas: da atenção, da notação, do julgamento imparcial e do pensamento orientando a ação.
A atenção substitui o comportamento passivo anterior, apenas receptivo, por uma atitude de busca dos estímulos externos responsáveis pelas impressões sensórias. Para tanto requer o desenvolvimento de órgãos sensoriais direcionados para o mundo externo, bem como exige que a consciência passe a abranger, além das qualidades de prazer e desprazer, os estímulos provenientes do mundo exterior e traduzidos em qualidades sensórias. A notação consiste em “assentar os resultados desta atividade periódica da consciência - uma parte do que chamamos de memória.” (FREUD, 1976, v. XII p. 280)
O julgamento imparcial visa a decidir se determinada idéia se coaduna ou não com a realidade, se é falsa ou verdadeira. Por outro lado, descargas motoras realizadas de maneira reflexa com a única finalidade de gastar energia são transformadas em ação, ou seja, passam a ser empregadas para alterar apropriadamente a realidade. Esta transformação é viabilizada pelo “processo de pensar, que se desenvolveu a partir da apresentação de idéias. O pensar foi dotado de características que tornavam possível ao aparelho mental tolerar uma tensão aumentada de estímulos, enquanto o processo de descarga era adiado.” (FREUD, 1976, v. XII p. 281) O pensamento é um tipo de atuação experimental que desloca e despende (descarrega) pequenas quantidades de catexia. Ele envolve a transformação de catexias livremente móveis em vinculadas, fenômeno viabilizado mediante o aumento de todo o processo catexial.
“Além do princípio do prazer” analisa os pares de princípios Nirvana e constância e prazer e realidade relacionados com as funções primária e secundária do aparelho psíquico.
O princípio de Nirvana corresponde à pulsão de morte, assim como o de prazer se liga à pulsão erótica. Do ponto de vista econômico, ou seja, da circulação e repartição da energia pulsional no aparelho psíquico, encontramos em uma cada das duas duplas processos envolvendo energia livre (princípios de Nirvana e prazer), e energia ligada (princípios de constância e realidade). Quando pensamos na descrição espacial do aparelho psíquico, localizamos a ocorrência dos princípios com energia livre no inconsciente, e os processos mentais com energia ligada no pré-consciente e consciente. Sob o aspecto dinâmico a energia vinculada indica uma influência do ego, que busca empecer a livre energia do id.
O princípio de Nirvana representa a tendência dominante da vida mental e, possivelmente, da vida nervosa em geral. Consiste no “esforço para reduzir, para manter constante ou para remover a tensão interna devida aos estímulos” (FREUD, 1976, v. XVIII p. 76). Os autores do Vocabulário da Psicanálise ressaltam que a utilização do vocábulo “nirvana” radicalizou o par antecedente de princípios (inércia e constância), relacionados às funções primária e secundária do aparelho psíquico. Isto porque o termo[9] acrescenta uma ressonância filosófica, seja considerando sua origem hinduísta como schopenhaueriana, que estabelece uma correspondência do princípio assim nomeado com a pulsão de morte, e sugere “uma ligação profunda entre o prazer e o aniquilamento” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 465).
O princípio de prazer, já apresentado quando tratei da transformação da energia livre em energia ligada, é um mecanismo de regulação “automática” [10] da energia que circula no aparelho psíquico por meio da evitação ou do escoamento da tensão desagradável, o que proporciona a sensação de prazer relacionada com a redução da excitação. Em nota de rodapé no texto “Os Instintos e suas vicissitudes” [11], o comentarista James Strachey[12] indica que este princípio é o de Nirvana, modificado sob a influência de Eros. Na hipótese desenvolvida por Freud em “Além do princípio do prazer”, já apresentada, vimos como no início da vida os perigosos estímulos ambientais exigiram da nascente pulsão erótica, quimicamente identificada com o inorgânico - portanto com a pulsão de morte -, uma atitude de ligação para defender a vida, e como Eros desvia o movimento destrutivo da pulsão de morte para o exterior do organismo, inclusive através de sua fusão às atividades eróticas.
O conceito “princípio do prazer” parte de uma simplificação das definições de prazer e desprazer. Freud não descuida desse problema. Ele mantém essa interpretação por ela permitir enunciar princípios regentes válidos tanto para as instâncias conscientes como para as inconscientes.
É preciso salientar que o prazer na psicanálise não corresponde ao apaziguamento de necessidades vitais como, por exemplo, a de sede e a de fome. Conceitualmente o prazer se acha “ligado a processos (vivência de satisfação), a fenômenos (o sonho), cujo caráter desreal é evidente.” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 469) O desejo é uma moção psíquica direcionada para a catexia dos traços mnésicos que sinalizam a percepção da circunstância em que ocorreu a primeira satisfação. A “realização” do desejo se dá com a reprodução alucinatória dessas percepções. A procura de objeto real orienta-se por esta relação com sinais. A articulação desses sinais constitui a fantasia, que é correlativa do desejo. “A concepção freudiana do desejo refere-se especialmente ao desejo inconsciente, ligado a signos infantis indestrutíveis.” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 114) Vimos a raiz desse processo na alucinação de satisfação característica dos bebês.
O princípio de realidade modifica o de prazer e se impõe como o princípio regulador do funcionamento mental. Sob sua regência “a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas toma por desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior.” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983, p. 470)
O princípio do prazer, porém, não se deixa substituir facilmente pelo de realidade. A parcela da energia pulsional erótica não transformada pelas pulsões autoconservadoras e narcisistas persiste em fluir livremente. Isso é possível devido a dois fatos. Num primeiro estágio a pulsão sexual não se frustra, pois obtém prazer do próprio corpo através de atividades auto-eróticas. Na fase seguinte, quando se inicia o processo de busca de um objeto, o desenvolvimento sexual sofre uma interrupção, passando por um período de latência até a puberdade. Esses dois fatores dilatam o tempo de domínio do princípio de prazer sobre as pulsões eróticas. “Em conseqüência dessas condições, surge uma vinculação mais estreita entre o instinto sexual e a fantasia, por um lado, e, por outro, entre os instintos do ego e as atividades da consciência.” (FREUD, 1976, v. XII p. 282)
A ambigüidade das pulsões de morte e de vida e dos princípios através dos quais elas se expressam é explicitada na longa, porém produtiva, citação do parágrafo final de “O Ego e o id”, onde Freud remete essas pulsões ao correlativo par biológico célula germinal e soma, e onde o princípio de prazer se dispõe a favor da pulsão de morte ao desativar os distúrbios gerados pela libido, responsável pela elevação do nível energético no aparelho psíquico:

E da luta contra Eros! Dificilmente se pode duvidar que o princípio do prazer serve ao id como bússola em sua luta contra a libido - a força que introduz distúrbios no processo de vida. Se é verdade que o princípio de constância de Fechner governa a vida, que assim consiste em uma descida contínua em direção à morte, são as reivindicações de Eros, dos instintos [pulsões] sexuais, que, sob a forma de necessidades instintuais [pulsionais], mantêm o nível que tende a baixar e introduzem novas tensões. O id, guiado pelo princípio do prazer - isto é, pela percepção do desprazer - desvia essas tensões de diversas maneiras. Em primeiro lugar, anuindo tão rapidamente quanto possível às exigências da libido não sexualizada - esforçando-se pela satisfação das tendências diretamente sexuais. Mas ele o faz de modo muito mais abrangente em relação a certa forma específica de satisfação, em que todas as exigências componentes convergem - pela descarga das substâncias sexuais, que são veículos saturados, por assim dizer, de tensões eróticas. A ejeção das substâncias sexuais no ato sexual corresponde, em certo sentido, à separação do soma e do plasma germinal. Isto explica a semelhança do estado que se segue à satisfação sexual completa com o ato da cópula, e o fato de a morte coincidir com o ato da cópula em alguns animais inferiores. Essas criaturas morrem no ato da reprodução porque, após Eros ter sido eliminado através do processo de satisfação, o instinto [pulsão] de morte fica com as mãos livres para realizar seus objetivos. Finalmente, como vimos, o ego, sublimando um pouco da libido para si próprio e para seus propósitos, auxilia o id em seu trabalho de dominar as tensões. (FREUD, 1976, v. XIX, p. 62-63)
Após o percurso repleto de meandros necessários para se compreender a différance, a arquiescritura, as pulsões, os princípios representantes de suas tendências e a economia da morte, vejamos o que se acrescenta 30 anos após o “Projeto” com o modelo metafórico do “Bloco mágico”, utilizado por Freud para explicar o funcionamento do psiquismo, e qual o corte realizado neste texto por Derrida.
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O bloco mágico
O bloco mágico é um brinquedo de criança constituído por uma placa de cera coberta por duas folhas - uma de seda e outra transparente, sobreposta com a finalidade de proteger-lhe. A brincadeira consiste tanto em realizar um percurso com uma ponta seca comprimida sobre a folha transparente para visualizar seu rastro registrado pela aderência da folha de seda à cera, como em fazer desaparecer este vestígio ao desgrudar com as mãos as duas folhas da placa de cera, tornando a superfície do bloco novamente virgem e pronta para novos registros. As impressões desfeitas na superfície ficam registradas em baixo relevo na placa de cera, porém não mais reaparecem na folha de seda a não ser na contraluz.
Freud compara as duas folhas do bloco com as duas camadas do aparelho perceptual de nossa mente: a do escudo protetor externo voltado para diminuir o impacto das excitações provenientes do mundo exterior e a de uma superfície situada atrás dele, o sistema Perceptivo-Consciente - Pcpt-Cs. - receptor dos estímulos externos.
O bloco mágico como metáfora permite pensar as duas funções do aparelho psíquico - reter as impressões duráveis e apresentar-se virgem às novas recepções -, localizando-as em dois sistemas separados, porém inter-relacionados: o Pcpt.-Cs., receptor de estímulos mas não retentor de traços permanentes, e o mnêmico inconsciente, posicionado por detrás do sistema Pcpt.-Cs., equiparável à placa de cera.
O contínuo desvanecimento da escrita, decorrente do rompimento do contato íntimo entre a folha que recebe os estímulos e a prancha de cera que retém a impressão, concorda com a noção freudiana acerca do método de funcionamento do aparelho mental. Segundo essa teoria o inconsciente estende sensores ao mundo externo através do veículo do sistema Pcpt.-Cs. e os retira tão logo classifique as excitações dele provenientes. Diz Freud: “Desse modo as interrupções, que no caso do Bloco Mágico têm origem externa, foram atribuídas na minha hipótese à descontinuidade na corrente de inervação, e a ruptura concreta de contato que ocorre no bloco mágico foi substituída, em minha teoria, pela não-excitabilidade periódica do sistema perceptual.” (FREUD, 1976, v. XIX, p. 290)[13]
Freud finaliza “Uma nota sobre o ‘bloco mágico’” indicando o duplo movimento das mãos sobre o bloco mágico - escrevendo e elevando periodicamente a folha de cobertura da prancha de cera - como processos integrantes de sua representação do funcionamento do aparelho perceptual da mente.
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A leitura de Derrida de “Uma nota sobre o ‘bloco mágico’”
Segundo Derrida, o uso que Freud faz da imagem da escrita como técnica a serviço da memória é uma repetição de um recurso metafórico da tradição ocidental. Sua utilização, porém, ultrapassa o sentido tradicional. Em “Uma nota sobre o ‘bloco mágico’” a escrita não é apresentada como uma técnica exterior auxiliar da memória e sim como uma peça material extraída do psiquismo.
Derrida desdobra esse estudo de Freud a partir das três analogias estabelecidas por Freud entre este brinquedo e a escritura psíquica, e cujos pontos de semelhança ressaltados remetem a mecanismos de proteção. As duas analogias iniciais referem-se à topografia e à descrição das funções dos sistemas componentes do aparelho mental, a última ao seu funcionamento.
A primeira se dá entre o aparelho perceptivo e a disponibilidade da folha transparente à incisão da ponta seca.
Nessa comparação Freud insiste no caráter essencialmente protetor da folha de celulose, sem a qual o frágil papel de seda situado abaixo dela seria riscado ou rasgado. A partir daí ressalta Derrida que toda escrita se constitui “em proteção contra si, contra a escrita segundo a qual o “sujeito” está ameaçado ao deixar-se escrever: ao expor-se” (DERRIDA, 1971, p. 218). Trata-se de uma capa de proteção para amenizar a exposição do sistema perceptivo à incisiva escrita dos estímulos externos.
A segunda analogia refere-se à correspondência do inconsciente à tabuinha de cera, tendo em vista que ela mantém em baixo relevo o rastro do estilete calcado sobre a folha de seda, garantindo sua sobrevivência na memória.
Essa possibilidade de retenção do traço da ponta seca e, ao mesmo tempo, de retorno da folha de seda ao estágio de virgindade receptora, faz com que a metáfora do Bloco atenda a dupla e contraditória exigência do aparelho psíquico. A “mágica” do brinquedo se assemelha à do aparelho mental, onde o sistema Perceptivo-Consciente não compõe nenhum traço duradouro, enquanto “as bases da recordação produzem-se em outros sistemas de suplência. A escrita substitui a percepção antes mesmo de ela aparecer a si própria. A “memória” ou a escrita são a abertura desse próprio aparecer. O ‘percebido’ só se dá a ler no passado, abaixo da percepção e depois dela.” (DERRIDA, 1971, p. 219) Essa interpretação ressalta as noções de sistema de suplência e de atraso do ‘percebido’.
A terceira analogia relaciona a cronometria das escrituras sobre as camadas de papel do Bloco, e a que se estabelece no sistema Pcpt.-Cs. do aparelho mental em decorrência de seu relacionamento intermitente com os estímulos externos.
No Bloco o ritmo da escrita e de seu apagamento é determinado por duas mãos externas, já no sistema perceptivo esta cadência é marcada a partir do Sistema Inconsciente. Segundo Freud o sistema Pcpt.-Cs., totalmente permeável, não se apresenta continuamente aberto aos estímulos. Seu funcionamento é determinado pelo Sistema Inconsciente, que lhe imprime uma cadência ao ser responsável por acioná-lo, através de inervações periódicas de catexia. Retiradas essas catexias a consciência se apaga. Para Freud a representação humana descontínua do tempo vincula-se a essa periodicidade cadenciada pelo espaçamento, instituindo momentos de excitabilidade e não-excitabilidade. Derrida acentua ser este um tempo voltado para a economia da escrita.
Essa temporalidade ritmada pelo espaçamento diz respeito tanto à “descontinuidade horizontal na cadeia dos signos”, como à “escritura como interrupção e restabelecimento do contato entre as diversas profundidades das camadas psíquicas, o material temporal tão heterogêneo do próprio psíquico.” (DERRIDA, 1971, p. 219)
O suplemento de Derrida começa retomando o parágrafo final de “Uma Nota sobre o ‘bloco mágico’”, onde a representação do aparelho perceptual da mente se faz a partir de uma cena imaginária do bloco mágico sendo manipulado simultaneamente por duas mãos: a que escreve e a que apaga.
Derrida demarca que na metáfora do bloco este é apenas um utensílio dependente de duas mãos, e não uma máquina que trabalha sozinha, sendo incapaz de espontaneamente fazer retornar à folha de seda o traço registrado em baixo relevo na placa de cera. Num gesto platônico Freud contrapõe esse aparelho morto semelhante à hypomnésis, à nossa memória viva, que reproduz do interior o escrito uma vez apagado.
Ao indicar esse ponto de contato entre a metáfora do bloco e a tradição filosófica ocidental Derrida passa a inquirir o texto freudiano.
Exige ainda de Freud uma maior ousadia no sentido de explicitar questões às quais abriu caminho para serem pensadas. Assim afirma que Freud não se interrogou “explicitamente sobre o estatuto do suplemento ‘materializado’ necessário a uma pretensa espontaneidade da memória, ainda que esta espontaneidade fosse diferenciada em si, barrada por uma censura ou por um recalque que [...] não poderiam agir sobre uma memória perfeitamente espontânea.” (DERRIDA, 1971, p. 223)
O bloco mágico representa a morte e a finitude no psíquico e suplementa essa finitude. Esse pensamento remete à unidade freudiana de morte e vida. Aqui é interessante reavivar essa relação entre vida e morte apresentada por Derrida a partir do “Projeto para uma psicologia científica”. Para isso busco uma síntese precisa nas palavras de Nascimento:

(...) se a violência da abertura do caminho (frayage, Bahnung) significa a possibilidade de destruição do sistema, a inscrição do rastro (Spurniederschrift) para a formação da memória só pode traduzir uma repetição da experiência como fator de preservação da própria vida. Aquilo que Derrida designa a partir de Freud como economia da morte é um tipo de repetição originária, a fim de retardar o frayage definitivo. Economizar significa duplamente reservar, isto é, guardar como reserva a inscrição mnésica, e poupar, evitando o dispêndio final, que seria a morte enquanto desestruturação do sistema. A repetição originária que permite a constituição da vida é tanto a repetição diferenciada do fator tanatológico, e essa repetição institui uma dissimulação que protege contra a ameaça virtual, quanto um adiamento, até o último instante, da experiência liminar. (NASCIMENTO, 1999, p. 169)
No bloco mágico a economia de morte é encenada pela temporização comandada pelo sistema inconsciente do aparelho perceptivo, representada pelas mãos no bloco. “Uma mão que inscreve e a outra que apaga provisoriamente o rastro escrito após ter lido. Duas mãos, dois textos, duas escritas [...] impedem de decidir onde acontece a primeira inscrição e onde começa virtualmente a escritura.” (NASCIMENTO, 1999, p. 176) A leitura é este movimento de dentro para fora, como se o estilete abrisse caminho no sentido inverso, após o percebido ter participado de um jogo de transcrições que o reestrutura indefinidamente segundo novas relações. Derrida cobra de Freud a explicitação do acréscimo do suplemento aos rastros, que ocorre no processo de transcrição de material entre os diversos sistemas do aparelho psíquico, onde se processam novas configurações a partir do enredamento com outros rastros. Os rastros são inscrições em movimento cujo sentido “se apresenta só posteriormente, ao modo de suplemento.” (NASCIMENTO, 1999, p. 178)
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O suplemento
Vejamos o pensamento envolvido na noção de suplemento.
A lógica do suplemento difere da do complemento. Esta, devedora da metafísica da presença, refere-se à totalização, à complementação a partir do acréscimo da parte que falta em alguma coisa, pertencente à própria coisa. Já a lógica do suplemento, da escritura na différance, diz respeito a um signo flutuante e exterior, que acrescenta um excesso ao buscar suprir a falta da completude de um Todo organizado a partir de um centro único.
Segundo a lógica do suplemento, o signo é ao mesmo tempo arbitrário e motivado.
É arbitrário porque nenhuma instância transcendental predetermina sua inscrição gráfica. E é motivado porque não existe criação pura surgindo do nada. O que existe é uma “rede de rastros, no qual uma marca qualquer se dá a ler, a arbitrariedade se deixa reorientar pela motivação necessária. O mesmo jogo diferencial que inscreve arbitrariamente uma marca a faz se motivar na relação pura para com as marcas em torno.” (NASCIMENTO, 1999, p. 185)
A segunda exigência de Derrida refere-se à necessidade de radicalizar o conceito freudiano de traço para “extraí-lo da metafísica da presença que ainda o retém (em especial nos conceitos de consciência, inconsciente, percepção, memória, realidade, isto é, também de alguns outros).” (DERRIDA, 1971, p. 226)
Segundo ele, a gestualidade implícita no funcionamento do bloco, produzindo um espaçamento e uma temporalidade, prolifera os momentos da percepção, as “origens” do percebido, desvanecendo a imagem tradicional da intuição e da percepção originárias, da simplicidade do “agora” da percepção do outro no momento mesmo de sua apresentação. Essa proliferação de origens do percebido desfaz a intemporalidade de um objeto inteligível, inviabilizando sua paralisação num conceito de verdade. A escrita como interrupção e restabelecimento do contato entre as diversas profundidades das camadas psíquicas implica em recortes nos estímulos externos, na propagação de repetições desses estímulos e na simultaneidade entre desativação da superfície receptora e “absorção” do traço à trama do inconsciente com seus processos “intemporais”.[14] Assim, a memória não é uma presença única e simples, pois ela é consignada em diferentes espécies de signos, envolvendo várias inscrições. Essa afirmação parte da hipótese de que o mecanismo do psíquico se constitui a partir de uma sobreposição de estratos, e que de tempos em tempos o material presente sob a forma de traços mnésicos é submetido a uma transcrição que o reestrutura segundo novas relações.[15]
A terceira exigência que Derrida faz do texto de Freud, já abordada anteriormente, diz respeito à função primária do sistema nervoso.
A idéia do processo primário, segundo o pensador francês, é questionada na metáfora do Bloco porque não dá para pensar a escritura sem o recalque, sem que esteja submetida a uma vigilância e ao mesmo tempo a um fracasso da censura. “A sua condição é que não haja nem um contato permanente nem uma ruptura absoluta entre as camadas.” (DERRIDA, 1971, p. 221), e continua: “só somos escritos escrevendo pela instância em nós que sempre já vigia a percepção, quer ela seja interna quer externa.” (DERRIDA, 1971, p. 222) A escritura só se reproduz como legibilidade se permitir explorações, o que supõe uma não-permeabilidade pura.
Não me proponho tomar posição nessa discussão. Derrida ajudou-me apresentando uma entrada nos textos de Freud, a visada dos contos de Tutaméia que empreendo solicita “conceitos” freudianos que me foram facilitados por Derrida, porém não sua radicalização inserida já na arquiescritura, que contesta a função primária e a primazia da pulsão de morte, embora me sinta à vontade para utilizar este quase transcendental sempre que se fizer conveniente.
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Notas
[1] Quase transcendental é uma terminologia derridiana para indicar algo que se coloca no lugar do “nome”, e que envolve um movimento de pensamento que se utiliza de uma linguagem impregnada pela filosofia ocidental, porém apontando para um território que lhe escapa.
[2] E aqui construí um nicho para registrar minha gratidão a Telma Boudou, que me propiciou encontrar o espaço tridimensional do texto a partir de suas deliciosas análises de Madame Bovary, durante as aulas no Mestrado de Literatura Brasileira da UFES.
[3] Q’h é utilizado por Freud para representar a energia proveniente do mundo externo.
[4] Vale aqui um parêntese para ressaltar a fugacidade da consciência neste modelo, indicando a radicalização de um pensamento que questiona o primado da presença na metafísica Ocidental.
[5] Confira na página 142 de “Os Instintos e suas vicissitudes” (FREUD, 1976, v. XIV). Antecede esse artigo uma nota do editor inglês, que aponta no decorrer da obra freudiana dois conceitos de pulsão. Um, aqui utilizado, onde ‘Trieb’ (pulsão) é apresentada como ‘Triebrepräsentanz’ (representante instintual); outra, onde distingue a idéia - ou grupo de idéias - que representam o instinto (Vorstellung), como sendo catexizada com uma cota de energia proveniente de uma pulsão, esta continuando a se apresentar como um elemento não psíquico.
[6] Em “Além do princípio do prazer”, Freud afirma acerca do estágio de desenvolvimento da teoria sobre as pulsões: “em nenhuma região da psicologia tateamos mais no escuro” (p. 71); na página 74 reafirma a sentença em: “a obscuridade que reina na teoria dos instintos [...]”; sobre o conhecimento relacionado à origem da sexualidade diz : “podemos comparar o problema a uma escuridão” (p. 78); e na página 81 fala de “processos desnorteantes e obscuros” relacionados às pulsões de vida e de morte.
[7] Conferir FREUD, 1976, v. XVIII p. 83.
[8] Segundo nota de James Strachey, comentarista da publicação da obra freudiana aqui utilizada, esta afirmativa de Freud é uma ficção justificável. Confira FREUD, 1976, v. XII, p. 279.
[9] “nirvana. [Do sânscr. Nirvâna, extinção (da chama vital).] S.m. 1. Filos. No budismo, estado de ausência total de sofrimento; paz e plenitude a que se chega por uma evasão de si que é a realização da sabedoria. 2. Fig. Quietude perpétua [...]. 3. P. ext. Apatia, inércia.” (FERREIRA, 1986, p. 1194)
[10] Confira LAPLANCHE e PONTALIS, 1967, p.466.
[11] (FREUD, 1976, v. XIV, p. 142)
[12] Para esta afirmação Strachey parte de “O Problema econômico do masoquismo” e de “Além do princípio do prazer”.
[13] Em “Além do princípio do prazer” Freud compara os órgãos dos sentidos a “tentáculos que estão sempre efetuando avanços experimentais no sentido do mundo externo e, então, retirando-se dele.” (FREUD, 1976, v. XVIII, p. 43)
[14] Confira FREUD, 1976, v. XVIII p. 43
[15] Freud cita três inscrições, supondo entretanto a existência de outras: a percepção, ligada à consciência mas não retendo nenhum traço do acontecimento, o sinal de percepção, incapaz de ter acesso à consciência, sendo uma inscrição constituída por associação simultânea no inconsciente, e a inscrição pré-consciente ‘“ligada às representações verbais, correspondendo ao nosso eu oficial... esta consciência pensante secundária, ocorrendo com retardamento no tempo, está possivelmente ligada à revivescência alucinatória de representações verbais.’” (DERRIDA, 1971, p. 193) Os tempos envolvidos nestas diversas inscrições são vários e comunicantes.

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